Journal of Specialized Nursing Care

A casa em que vivemos: identificando o racismo institucional no Ministério da Saúde

The house we live in: identifying institutional racism in the Brazilian Health Ministry

Isabel CF da Cruz – Membro titular do Comitê Técnico de Saúde da População Negra (representação da SEPPIR [Secretaria Especial de políticas de Promoção da Igualdade Racial]) - Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa – SGEP – Ministério da Saúde. Coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra – Universidade Federal Fluminense. Email: isabelcruz@uol.com.br

 

Referência bibliográfica do livro

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia.   Como elaborar projetos de pesquisa para o PPSUS: guia / Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Ciência e Tecnologia. – Brasília : Ministério da Saúde, 2010. Disponível em: http://www.rededepesquisaaps.org.br/UserFiles/File/biblioteca/como_elaborar_projetos_ppsus_guia.pdf

Introdução

Este texto é mais do que uma resenha do guia sobre elaboração de projetos da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Nele também apontamos o racismo institucional operando no Ministério da Saúde, a casa onde vivemos[1], um espaço que deve ser de todos e todas.

Propósito e público alvo

O manual pretende ser um guia prático, apresentando um con­junto de recomendações e sugestões para a elaboração de projetos de pesquisa para o Programa Pesquisa para o SUS (PPSUS), programa criado pelo Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, em 2004, com o intuito de financiar pesquisas em temas prioritários para a saúde da população.

O público alvo deste manual parece ser os profissionais das Secretarias Estaduais de Saúde, uma vez que o referido manual deve ser referência para os profissionais que buscam aprovação de seus projetos no âmbito do PPSUS.

Breves detalhes do(s) autor(es), editor(es)

Com uma tiragem, na sua  1ª edição, em 2010, de 3.000 exemplares, o manual foi elaboração e distribuição pelo Ministério da Saúde. Mais especificamente pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos e seu Departamento de Ciência e Tecnologia. A versão online está disponível no Portal do Ministério da Saúde.

A revisão técnica do manual coube a Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza (Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia – UFBA) e Omero Benedicto Poli Neto (Professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP)

Delineamento do conteúdo/capítulos

O manual de 78 páginas apresenta um conteúdo, no nosso entendimento, bastante objetivo e direto sobre metodologia da pesquisa, sendo seu conteúdo distribuído pelos seguintes capítulos: 1 O que é o PPSUS?, 2 O Que é Ciência? , 3 O Que é Pesquisa? , 4 Projeto de Pesquisa , 5 Bioética e Ética na Pesquisa.

Cabe destacar no capítulo 3, os subtítulos Pesquisa em saúde e Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (3.3) , O gap 10/90 (3.4) e A complexidade do processo saúde-doença (3.5).

A abordagem destes temas aproxima os métodos e técnicas de pesquisa com as reais necessidades de investigação científica na área da saúde. Mais do que um manual, o livro tem o potencial de se constituir num instrumento de operacionalização da política de pesquisa em saúde.

Indice, apêndice, figuras e tabelas.

O manual apresenta uma lista de abreviaturas e sumário. Traz ainda as Referências e um Glossário de Pesquisa em Saúde. Muitos quadros, nenhuma figura ou tabela.

Qualidade e nível do conteúdo

Partindo do pressuposto que todos os cursos de graduação no Brasil têm a disciplina de metodologia da pesquisa e exigem a defesa de um TCC, podemos então afirmar que o conteúdo do manual não é introdutório.

Todavia, não é um conteúdo avançado sobre elaboração de projeto de pesquisa. Deve contudo atender às exigências e expectativas do PPSUS para a apresentação de propostas visando financiamento.

Planejamento visual e facilidade de leitura

A diagramação é simples, as páginas não possuem figuras, desenhos e  tabelas. Apenas quadros nos quais alguns aspectos do texto são destacados. Porém, longos trechos de citação quebram a fluidez do texto.

Qualidade acadêmica

No que se refere à qualidade acadêmica, o guia tem como pontos fortes a associação da pesquisa em saúde com as metas de desenvolvimento para o milênio. Neste sentido, aponta para a necessidade de as instituições de saúde do SUS buscarem soluções ou testarem soluções já propostas para erradicação da fome, redução da mortalidade materna, entre os 8 objetivos da Organização Mundial da Saúde.

Além disso, muito apropriadamente, o guia aborda o “gap 10/90”, ou seja, o desequilíbrio entre o finan­ciamento destinado à Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde – P&D/S (10%) e a magnitude da car­ga das doenças no mundo (90%). Em outras palavras: apenas 10% dos recursos financeiros aplicados em pesquisa são utilizados para 90% das doenças que afligem a humanidade!

O “gap 10/90” não significa necessariamente aumentar os recursos financeiros para a pesquisa. Significa principalmente que os pesquisadores da área da saúde precisam atentar para as demandas da sociedade em seu entorno.

No sentido de alertar os profissionais de saúde para o gap 10/90, o guia explora a complexidade do processo saúde-doença, com seus determinantes e condicionantes da saúde, tais como alimentação, saneamento básico, etc. Lamentavelmente, não cita entre os determinantes as estruturas ideológicas de opressão como o sexismo, o racismo, entre outras.

Como não poderia deixar de ser o manual refere-se à II Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (II CNCTIS), realizada em julho de 2004, a partir de uma intensa discussão sobre pesquisa em saúde por meio da realiza­ção de conferências regionais e municipais.  O resultado deste processo foi a aprovação da Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (PNCTIS) e da Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde (ANPPS), que servem tanto como instrumentos de gestão para o Ministério da Saúde quanto para orientar o planejamento de fomento à pesquisa.

Em um quadro, as 24 subagendas que compõem a ANPPS são apresentadas. Cabe aqui nesta resenha destacar duas das subagendas de pesquisa: saúde dos povos indígenas e a saúde da população negra. Isto porque, conforme apontaremos adiante, elas serão desconsideradas em razão do racismo institucional operante nos alicerces, colunas e fundações do Ministério da Saúde, a casa onde vivemos trabalhando...

O racismo institucional[1] pode ser evidenciado ou detectado em processos, atitudes ou comportamentos que denotam discriminação derivada de estereótipos, preconceito inconsciente, ignorância ou falta de atenção e que colocam pessoas e grupos em situações de desvantagem.

Por estar incluso na estrutura das instituições, esta forma de racismo se perpetua em códigos de costumes, práticas e normatizações. Por funcionar deste modo, nunca se encontra uma pessoa ou indivíduo que possa ser responsabilizado pelo ato discriminatório.

 

Ao contrário, em vez de agir contra “o/a outro/a”, o racismo institucional pode ser reconhecido pela imobilidade ou indiferença diante da necessidade.

 

Dada esta rápida explicação sobre o racismo institucional, voltamos à análise do guia de elaboração de projetos.

 

Em um quadro sobre os principais componentes do projeto de pesquisa, perguntas orientam o leitor no passo a passo da construção do projeto. Na parte referente à metodologia, destacamos a seguinte pergunta: “Minha população do estudo é representativa da população como um todo?”

 

Dada a pergunta, poderíamos depreender que se dos projetos que concorrerão ao PPSUS que definam em sua população/amostra representação proporcional de sujeitos que se auto-declarem brancos, pretos, pardos, indígenas e amarelos. Porém, logo adiante no guia, ou manual, ao explicar sobre os campos do formulário on-line do PPSUS, verificamos que na seção Casuística & Métodos a recomendação é “detalhar a população ou amostra a ser estudada (tamanho, idade, peso, sexo, escolaridade e outros elementos que sejam pertinentes ao estudo) e os critérios de inclusão e exclusão.”

A variável raça/cor não está incluída.

 

Anteriormente, dissemos que o racismo institucional se expressa pela imobilidade diante da necessidade. Não recomendar a inclusão da variável raça/cor no detalhamento da população ou amostra dos projetos a concorrerem ao PPSUS é um exemplo de racismo institucional em operação.

E como o racismo institucional está operando em nossa própria casa, no Ministério da Saúde?

 

1- Desde 1996, o Brasil possui uma progressista regulamentação sobre ética em pesquisa que é a Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Nesta Resolução (vide em http://www.ufrgs.br/bioetica/res19696.htm), na seção VI.3 sobre  informações relativas ao sujeito da pesquisa, no item a, temos a seguinte recomendação:

“descrever as características da população a estudar: tamanho, faixa etária, sexo, cor (classificação do IBGE), estado geral de saúde, classes e grupos sociais, etc. Expor as razões para a utilização de grupos vulneráveis”

2- Em 2006, o Ministério da Saúde aprova a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) no Conselho Nacional de Saúde.

3- Em 2009, o Ministério da Saúde publica a Portaria GM/MS n° 992, em 13 de maio, instituindo a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, de caráter transversal às demais políticas de saúde.

4- Em 2010, é publicado o Estatuto da Igualdade Racial – Lei no. 12.288, de 20 de julho, cujo Título II sobre os Direitos Fundamentais, em seu Capítulo I sobre o Direito à Saúde, nos Artigos 6º, 7º e 8º faz-se alusão à saúde da população negra e à PNSIPN.

 

Em que pese normatizações, políticas e até mesmo leis, conquistas do movimento social democrático, o racismo institucional opera aqui, especificamente, por meio do descumprimento de legislação sobre a inclusão da variável raça/cor nos instrumentos de coleta de dados da pesquisa em saúde que concorre ao PPSUS. O racismo institucional opera por meio da imobilidade diante da legislação conquistada pelo movimento social, perpetuando assim a hegemonia de um segmento da população e garantindo para os demais, que também são cidadãos e cidadãs e pagadores de impostos as iniqüidades e disparidades em saúde.

Recomendação da revisora para o Editor, o Ministério da Saúde

Uma vez que a equidade é um dos pilares do Sistema Único de Saúde, deve ser uma preocupação constante dos gestores, pesquisadores e profissionais do Ministério da Saúde a avaliação contínua das causas de iniqüidades e disparidades. Em especial quando as diferenças na atenção à saúde são decorrentes das estruturas ideológicas de opressão.

Assim, sugerimos a revisão do guia de elaboração de projetos de pesquisa de modo a contemplar o que o próprio Ministério da Saúde presecreve na Resolução 196/96 e na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.

Recomendação da revisora para o/a leitor(a)

No que se refere à variável raça/cor, cabe dizer que você encontrará publicações recentes na literatura brasileira alegando que não se pode garantir sua confiabilidade, variabilidade e validade, assim como sua limitação como demarcadora de diferenças.

Se o racismo institucional se expressa pela imobilidade diante da necessidade, ele também se expressa pela negação da realidade.

Há quase 2 décadas, após longas discussões a acadêmicas e políticas, a variável raça/cor teve sua classificação estabelecida pelo IBGE, sendo o método consagrado de coleta desta informação a auto-declaração. Na análise dos dados coletados, também ficou acordado após calorosos debates que os que se auto-declaram pretos/as ou pardos/as são referenciados como negros/as.

E o que isso importa? O que importa não é a discussão de raça nas pesquisas. A raça é humana. O que se quer revelar, por meio dos dados de pesquisa desagregados por raça/cor é o racismo institucional traduzido pelas iniqüidades (desigualdades no acesso à saúde) e disparidades (desigualdades no cuidado em saúde).

As informações já existentes sobre iniqüidades e disparidades étnicas em saúde na população brasileira são suficientes para que o gestor e o profissional de saúde busquem tanto o estabelecimento de metas diferenciadas de sucesso quanto resultados  positivos na prestação do cuidado.

Porém, o racismo institucional, não se esqueça, opera por meio da imobilidade ou indiferença diante da necessidade (e outras formas de discriminação, também). Assim sendo, para um efetivo monitoramento e avaliação das políticas de equidade do MS são necessários dados relativos a raça/cor, sexo, opção sexual, idade, etc.

Conclusão

Em síntese, eu recomendo que você, leitor(a) aguarde a revisão do guia pelo MS. Mas, caso você esteja pensando em apresentar um projeto de pesquisa em saúde, considere no seu estudo ao menos a inclusão da variável raça/cor e saiba que sua atitude, concretamente, ajudará no combate ao racismo institucional.

Referência



[1] "The House I Live In" foi um filme ganhador do Oscar em 1945 que trata de unidade e tolerância étnica, mas teve cortado na canção tema o verso "meus vizinhos brancos e negros"  Este título foi usado para uma discussão sobre raça e racismo veiculada neste site: http://www.newsreel.org/transcripts/race3.htm. A idéia é: - Como podemos viver dentro do mesmo país e ao mesmo tempo sermos ignorados por ele?

 



[1] The Lancet  Institutionalised racism in health care. The Lancet 1999; 353 (9155):765.

 





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