Journal of Specialized Nursing Care

Nota prévia:

Nem Ladies, nem Nurses: Sinhazinhas e Mucamas. Por uma re-visão da história da enfermagem brasileira (e do Sistema de Saúde).[1]

Isabel Cristina Fonseca da Cruz[2]

Vera Regina Salles Sobral[3]

 

Resumo: O desconhecimento sobre as pessoas negras que abriram as trilhas da profissão e como isto foi feito, além da história de vida dessas pessoas no que se refere à vocação, `a ascensão social (ou não) e às relações étnicas no âmbito da profissão e do sistema de saúde, motivou-nos a realização deste projeto. Propomo-nos a estudar o papel histórico das (o) enfermeiras (o) negras (o), identificando-o nos documentos e a levantar a história de vida das (o) enfermeiras (o) negras (o), buscando as representações sociais referentes à profissão e às situações de racismo no sistema de saúde

Considerações iniciais, ou seja, um pouco sobre nós

O NESEN foi criado em 1994 e está institucionalmente vinculado ao Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica, da Universidade Federal Fluminense. Diante da expressiva contribuição da cultura e da ciência afrobrasileira na formação deste país e das condições adversas nas quais esta contribuição aconteceu (escravidão) e ainda acontece (exclusão), o NESEN tem como objetivos realizar pesquisas, propor e implementar atividades integradoras que possibilitem o conhecimento sobre a experiência histórica, social e cultural da etnia negra e das relações étnicas entre pessoas negras e brancas no Brasil, com ênfase nos temas das desigualdades étnicas e ascensão social.

Neste sentido, nos propomos a estudar o papel das (o) enfermeiras (o) negras (o) à medida em que ele se desenvolveu historicamente. As enfermeiras negras, assim como as demais pessoas negras em diversos setores profissionais, tiveram uma longa e difícil trajetória. Se os livros genéricos de história omitem ou distorcem a presença da etnia negra neste país, mais ainda os livros, teses e dissertações referentes à história da profissão, assim como aqueles que se propõem a analisar as relações interpessoais e de poder dentro do Sistema de Saúde.

Os trabalhos acadêmicos citam Florence Nightingale como a fundadora da enfermagem moderna. Porém estes mesmos estudos não fazem referência à negra jamaicana Mary Grant Seacole que a acompanhou, como enfermeira, durante a guerra da Criméia. No Brasil, a história da enfermagem começa com a criação da Escola de Enfermagem Anna Néry, em 1923. Entretanto, é bom lembrar, ou melhor, é  bom não esquecer, que fomos o maior país de escravos das Américas ou, o mais economicamente dependente do trabalho escravo durante mais de três séculos (MAURO, 1991). O que em outras palavras significa que que durante mais de três séculos todo trabalho no Brasil colonial foi fundamentalmente realizado por escravos, inclusive o cuidado das pessoas doentes, porém, nada foi produzido a respeito.

Alguém duvida que a esmagadora maioria dos estudos científicos na área da saúde não considera as características sociais-culturais-históricas das etnias que compõem a nação brasileira?

Mesmo que os escravos e escravas treinados para cuidar dos doentes não recebessem a denominação de enfermeiro (a), as atividades deles nitidamente tinham relação com o que se convenciona ser enfermagem, a saber: cuidados terapêuticos para a pessoa doente e implementação de prescrições médicas. Depois da abolição para onde foram estes ex-escravos especializados no cuidado dos doentes? Que influência tiveram no desenvolvimento da profissão e que modelos representaram para os seus descendentes?

Situação Problema, ou seja, o que nos inquieta

Um olhar informal sobre a profissão nos mostra que há um contingente significativo de pessoas negras atuando como auxiliares, técnicos e enfermeiros, assim como relacionamentos tensos devido a uma estrutura de poder calcada em ideologias discriminatórias. Ainda assim, em algumas Escolas de Enfermagem, encontramos mulheres negras, doutoras, professoras titulares.

Contudo, desconhecemos as pessoas negras que abriram as trilhas da profissão e como isto foi feito. Desconhecemos também a história de vida de mulheres e homens negros no que se refere à vocação, `a ascensão social (ou não) e às relações étnicas no âmbito da profissão e do sistema de saúde.

O olhar acadêmico sobre o papel da (o) enfermeira (o) negra (o) é muito importante. O conhecimento sobre esse papel nos ajudará a compreender as representações sociais sobre o Sistema de Saúde Brasileiro.

O nosso estudo justifica-se pela necessidade de quebrar este silêncio e esta cegueira sobre quase tudo que se refere à etnia negra. Neste sentido, partilhamos da compreensão de LEGOFF (1990) e NORA (1986) quando asseguram que a memória é feita de lembrança e de esquecimento e é também aquilo que dá textura e consistência ao coletivo. O entendimento dessa abrangência e os usos de seus significados (tão plural e relativa quanto a nossa capacidade de lembrar e de esquecer) darão, por conseguinte,  o tom que importa para esse trabalho.

Então, revelar um pedaço (um pedacinho talvez) da nossa memória de esquecimento é caminhar para uma reconstrução da história da enfermagem brasileira (relações entre sinhazinhas e mucamas) que se quer diferente da história oficial, tradicional e linear (relações entre ladies e nurses). A história oficial, escrita numa perspectiva colonialista, branca, eurocêntrica, higiênica e de exclusão, impõe aos negros e negras a falsa impressão de serem um povo sem história e, consequentemente, sem auto-determinação. Pior assim, porque na falta de história podemos não resistir a idéia de inventar uma que fortaleça a nossa auto-estima.

Objetivos, ou seja, a respeito de onde pretendemos chegar

Diante do exposto, pretendemos neste estudo identificar nos documentos da história de enfermagem contemporânea, arquivados no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Néry, as (o) enfermeiras (o) negras (o) que contribuíram para a profissão no Brasil.

Pretendemos ainda levantar a história de vida das (o) enfermeiras (o) negras (o), buscando na análise as representações sociais referentes à profissão e às situações de racismo no âmbito da profissão nos sistema de saúde.

Referencial conceitual, ou seja, daquilo que orienta nosso olhar

Quando se estuda etnia negra e as suas relações classicamente se recorre ao referencial de utopia racial brasileira, o melting pot. De certo modo, a história da enfermagem brasileira utiliza como referencial conceitos da democracia racial de Gilberto Freire, ou a tese de que a classe e não a etnia seria determinante da exclusão social no Brasil, ou de que o racismo é um resquício do nosso passado histórico e uma idiossincrasia individual não social.

Uma vez descritos os referenciais  que não servirão de balizamento para este estudo, cabe ainda ressaltar que no nosso entendimento é importante que os dados sejam vistos com olhos negros, de modo que se evidencie a (o) negra (o) como uma agente da história da enfermagem brasileira.

Metodologia, ou seja, as pistas, os indícios, as trilhas, os caminhos.que vamos percorrer...

Trabalhar com histórias de vida - vividas sentidas, sofridas – guarda relação estreita com a memória e com a cultura. A memória é o que constrói a narrativa, é o que dá o colorido e o sabor ao que se vai escrever. Mesmo que se tenha um roteiro para conduzir a entrevista é a memória, na perspectiva goffiniana de que “fica o significa”[4], que vai permitir a construção da leitura do passado com os olhos, os sentimentos e a paixão de quem o viveu.

A memória é a própria preservação da identidade coletiva e, ao mesmo tempo, instrumento e objeto de poder. Até porque toda memória é num momento subsequente, história e a sua temporalidade rompe com o tempo linear para alcançar o tempo social. Ela tem também uma dimensão política consubstanciada na possibilidade de dar voz aos atores sociais que viveram o cotidiano dos fatos e dos acontecimentos

A memória é seletiva e afetiva instalando a lembrança no sagrado e surgindo de um coletivo que ela mesmo solda. Isto significa dizer que há tantas memórias quanto grupos; que ela é, por natureza, múltipla e multiplicada, coletiva, plural e individualizada. Ela se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto e, por isso, a memória é absoluta enquanto a história é relativa[5].

A cultura traz a marca dos ritos, o tempero das relações sociais possíveis e os desencontros dos impossíveis, a trama das resistências e as conseqüentes formas de viver e conviver. A cultura fala de comportamentos e por isso está presente em qualquer pesquisa que use a história de vida como um caminho de construção histórica. Na nossa sociedade a transmissão oral de valores rituais, tradições, regras, hábitos, preconceitos permanece viva e com importância significativa no processo de formação dos sujeitos, das relações e dos comportamentos sociais.

Memória e cultura são subjetividades ricas em detalhes, em superposições e em movimentos. Na enfermagem, só começamos a pensar numa história diferente da oficial – aquela história branca, machista e elitista que demarcou poderes e limitou ações, no final dos anos 80 e inicio dos 90 com os estudos sobre as questões de gênero e da sexualidade de quem cuida e de quem é cuidado.

Considerada uma das primeiras profissões femininas em todos os tempos, os fatos históricos nos dizem que a enfermagem é uma profissão alimentada por ambiguidades. As vezes dá a impressão - a falsa impressão - de que fizemos a nossa história perseguindo opostos: anjo branco/prostituta, mãe/amante, Florence Nightingale/Sairey Gamp, rica/pobre, branca/negra, moça de boa família/moça de família duvidosa, enfermagem não tem sexo/personagem de filme pornográfico, docente/assistencial, vestida de uniforme branco/seminua de lingerie preta[6].

No longo caminho que ainda temos a percorrer precisamos nos apossarmos de nós mesmas, sentir a necessidade de aumentar o conhecimento e a compreensão sobre o nosso passado, nosso começo, nosso percurso, nossas parcerias, nosso envolvimento político-social.

Nessa trilha, as questões sobre etnia têm uma linguagem própria, uma linha invisível que demarca uma história que até o momento “se quis esquecer”. Qual é mesmo a visibilidade de enfermeiras e enfermeiros negros na história da enfermagem brasileira? Qual o seu significado? Que estratégias utilizamos para “esquecer” a performance das pessoas negra na enfermagem brasileira? Qual a apreensão dos seus legados profissionais na enfermagem atual?

A palavra é o lugar de memória mais amplamente conhecido e divulgado. A palavra é capaz de produzir efeitos, e em particular, efeitos subjetivos, o que desemboca na idéia de ação e transforma a linguagem que é pública em representação. Através do uso que se faz da palavra é possível perceber o seu significado, ou melhor, é o uso que dá o sentido da palavra; ela é performática porque é capaz de alterar o coisas ou estado de coisas.

Nesta pesquisa o que nos interessa é essa idéia performática da linguagem que cria laços discursivos entre os sujeitos e/ou com o mundo portanto, construindo subjetividade, isto é, a subjetividade é um efeito das palavras, das linguagens, das práticas lingüísticas que determinam suas regras de formação e reconhecimento privado e público. as subjetividades então são uma decorrência do uso de nossas palavras ou da maneira como ensinamos e aprendemos a ser sujeitos.[7]

Somos o que conseguimos dizer e o que o(s) outro(s) consegue(m) entender e dizer sobre nós. Somos o que a linguagem nos permite ser e acreditar que somos. Quando buscamos a nossa identidade de enfermeira, de enfermeiro estamos curiosamente atrás das nossas subjetividades modeladas historicamente e explicitadas naquilo que uma enfermeira ou um enfermeiro deve ser, proceder - à imagem de quem é ou parece ser branca ou branco e no seu oposto – negra ou negro - a imagem da antinorma, do desvio, da ruptura, figura indispensável para manter viva a imagem de uma enfermagem branca, machista e elitista. E nessa construção de subjetividades mediada pelas palavras vai-se criando uma cultura de enfermagem.

Nesta pesquisa colheremos a história de vida de enfermeiras negras e enfermeiros negros que trabalharam tanto no cuidado direto à população como na academia socializando o saber. Buscaremos enfermeiras e enfermeiros que se destacaram criativamente na profissão o que será caracterizado pelos seus legados profissionais e que se encontram, no momento da pesquisa, na região sudeste, notadamente no eixo- Rio-São Paulo-Minas, reconhecidamente o lugar de maior produção científica da enfermagem brasileira.

Faremos um diário de campo onde registraremos nossas observações sobre cada entrevistada/o, os contados iniciais, os mediadores do(s) contatos, reações à entrevistas, expressões, material de ilustração mostrado pelo entrevistado (fotos, documentos), ambiente de cada entrevistas.

A interpretação dos dados será feita através da análise de conteúdo e a partir dela poderemos inferir resultados que nos aproximem do conhecimento das representações sociais sobre a visibilidade, ou não, do trabalho da enfermeira negra e do enfermeiro negro na história da enfermagem e no sistema de saúde brasileiro, enfocando o seu processo de construção e transformação.  

Cronograma, ou seja, nossa organização do tempo

 

JANEIRO/MARÇO

 

ABRIL/JUNHO

 

JULHO/SETEMBRO

 

OUTUBRO/DEZEMBRO

 

*Seleção dos monitores

*Preparo e testagem dos instrumentos de coleta de dados

*Treinamento dos monitores

 

Coleta dos Dados

*Elaboração e divulgação de nota-prévia

*Análise simultânea dos dados

 

*Coleta dos Dados

*Divulgação de nota-prévia, relatório parcial

*Análise simultânea dos dados

 

*Análise e interpretação e síntese dos dados.

*Confecção do relatório final

*Divulgação da pesquisa

 

Referências

CRUZ, I. C. F. da  O Negro Brasileiro e a Saúde: Ontem, Hoje e Amanhã.

Rev Esc. Enf. USP, v.27, n3, p. 317-27, 1993.

LEGOFF, J. Les maladies ont une histoire. Paris: Editions du Seuil, 1985.

LEGOFF, J. A História Nova. S.P.: Martins Fontes, 1990.

MAURO, F. A Vida Cotidiana: O Brasil no Tempo de Dom Pedro II. S.P. :Cia das Letras, 1991.

NORA, P.. Les lieux de mémoire - la nation. Paris: Gallimard, 1986.

 


[1] Apresentado na IV Semana Científica de Enfermagem, EE-UFF, Niterói, 1994; e no 8o. SENPE, RP/SP, 1995.

[2] Doutora pela Universidade de São Paulo. Titular da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do NESEN – Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra.www.uff.Br/nepae/nesen.htm

[3] Doutora pela UFRJ. Prof. Adjunto da Universidade Federal Fluminense.

[4] Os acontecimentos que não tem significado ou representação em determinada cultura a memória “esquece”. LeGoff, J. A história nova. S.P.: Martins Fontes, 1990.

[5] Trabalhando com os conceitos de lugar de memória e dever de memória estabeleceu interessante argumento para os historiadores não profissionais e a necessidade de se escrever uma história dentro de cada profissão. Ver NORA, Pierre. Les lieux de mémoire: La nation. Paris: Gallimard, 1984.

[6] Para uma compreensão mais abrangente e contextualizada das representações explicitadas que marcam a história da enfermagem no mundo e particularmente no Brasil, ver: SOBRAL, V. et alli Os segredos de uma princesa. Anais do 48º CEBEN. SP.: ABEn, p.136-141, 1997; De Florence a duloren. R. Enferm. UERJ, RJ, v4, n.1, p.103-112, maio 1996; e ainda SOBRAL, V. A purgação do desejo. Tese dout. RJ.: UFRJ, 1994.

[7] COSTA, J.F. A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. RJ.: Relume Dumará





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