Diversidade, Equidade em Saúde e Cuidados de
Enfermagem – proposta de disciplina para a graduação em enfermagem na
EEAAC/UFF.
Isabel CF da Cruz
Breve descrição do contexto:
Em razão do ativismo político dos movimentos
sociais, nas últimas décadas várias leis foram aprovadas no Brasil visando a
promoção da cidadania e da igualdade de direitos sociais para todas as pessoas.
No sentido de romper com o ciclo vicioso das
ideologias opressivas e discriminatórias, no texto destas leis há expressas
recomendações para a inclusão de conteúdos de promoção da equidade social nos
currículos escolares de todos os níveis.
No que se refere à formação de graduação em
enfermagem, algumas leis têm impacto direto na estruturação do currículo e na
inclusão de temas transversais a todas as disciplinas. Em razão de nossa
atuação no movimento negro para o enfrentamento do racismo, destacamos duas leis
em especial neste texto.
Ao ser promulgada no ano de 2003, a Lei 10639, que
tornou obrigatório o ensino de História e Cultura da África e dos
Afrobrasileiros, o Estado brasileiro reconheceu a reivindicação histórica do
Movimento Negro e apontou para a promoção de uma educação mais democrática e
inclusiva.
Já em 2009, a aprovação da Política Nacional de
Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), a qual posteriormente foi incluída
no Estatuto da Igualdade Racial, definiu um conjunto de princípios, marcas,
diretrizes e objetivos voltados para a melhoria das condições de saúde desse
segmento da população. Incluiu no seu textos ações de cuidado e atenção à
saúde, bem como de gestão participativa, controle social, produção de
conhecimento, formação e educação permanente de trabalhadores de saúde, visando
o enfrentamento do racismo institucional.
Além destas duas importantes leis, no âmbito do
Sistema Único de Saúde, há outras de igual relevância para a prática
profissional baseada em direitos humanos, a saber:
- Saúde da População do Campo e da Floresta,
aprovada em 2008: dirigida para povos e comunidades que têm seus modos de vida
relacionados com a área rural, as florestas e os campos aquáticos entre outros
biomas que impactam em seu processo de bem-estar/mal-estar.
- Saúde da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transsexuais (LGBTT), aprovada em 2009: voltada para as demandas de
saúde/doença decorrentes da orientação sexual e de gênero, visando a redução
das iniquidades nos resultados terapêuticos.
- Saúde da População em Situação de Rua, aprovada
em 2009: dirigida para um grupo heterogêneo que se concentra nas grandes
cidades brasileiras e que tem na rua sua principal fonte de sustento.
- Saúde da População Cigana (em fase de formulação):
dirigida para um dos segmentos mais invisíveis na sociedade brasileira, mas
também um dos mais estigmatizados.
Diante desta demanda do Sistema Único de Saúde, a
Escola de Enfermagem Aurora Afonso Costa (EEAAC), da Universidade Federal
Fluminense (UFF) na sua revisão de currículo decidiu instituir uma disciplina
obrigatória que efetive a aplicação da Lei 10639/03 em seu curso de graduação,
mas que também considere as demais políticas que propiciem a promoção da
eqüidade em saúde da população negra e de outras culturas que compõem a nação
brasileira.
Descrição do problema:
Ainda que existam leis que obriguem os temas saúde
da população negra e diversidade cultural e de gênero nos currículos, isto não
acontece de forma natural e rápida, tendo em vista que a sociedade como um todo
e as instituições em especial possuem em suas estruturas processos e mecanismos
discriminatórios e mantenedores de relações desiguais de poder entre os grupos
socialmente vulneráveis.
Na área do ensino de saúde, parte da educação
enquanto um aparelho ideológico do Estado conforme o estruturalismo marxista,
uma mudança em direção a uma prática interétnica que considere a diversidade é
ainda mais dificultosa, pois as instituições de saúde (e
as escolas que formam seus profissionais) precisam igualmente rever os seus
mecanismos autônomos de produção e reprodução das discriminações e das relações
desiguais de poder em seu interior.
Desta forma, a área da saúde também produz e
reproduz discriminações e relações desiguais de poder interétnicas, seja no
processo de educação dos profissionais de saúde, seja na prática clínica junto
aos pacientes.
Isto posto, o problema a ser abordado é
especificamente incluir os temas saúde da população negra e diversidade
cultural e de gênero , assim como as estratégias para desconstrução do racismo,
do sexismo e de outras ideologias de opressão no curso de Graduação em
Enfermagem da UFF, conforme determinam a Lei 10639, a PNSIPN, entre outras de
promoção da equidade, observando ainda nas práticas de ensino aprendizagem a
construção de uma prática de enfermagem baseada em direitos humanos.
Neste sentido, a partir da demanda da sociedade
para EEAAC, mais especificamente, para a coordenação de graduação, sobre a
possibilidade de incluir uma disciplina de caráter obrigatório no currículo
sobre saúde da população negra, fui convidada, na qualidade de coordenadora do
Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra, para escrever uma proposta.
Medidas chaves para a mudança:
Para a inclusão de uma disciplina sobre Diversidade,
Equidade em Saúde e Cuidados de Enfermagem seguramente será necessário
também realizar paralelamente um trabalho sócio-político-andragógico com
os professores do curso de enfermagem, buscando identificar suas visões
tanto acerca da aplicabilidade da Lei 10639/03 quanto da PNSIPN e outras
políticas de promoção da equidade nas diversas disciplinas enquanto temas
transversais. Principalmente, nas disciplinas relacionadas à prática clínica
dos graduandos/as, assim como nas atividades de pesquisa e extensão.
Este trabalho além de possibilitar a troca de
experiências com docentes, profissionais de saúde e usuários(as) do SUS com
expertise ou demanda em saúde da população negra ou equidade em saúde,
permitirá a explicitação de preconceitos e o início do processo de
desconstrução das discriminações nas relações interpessoais.
Próximos passos:
Na dependência da aprovação nos devidos Colegiados,
será iniciado o processo de inclusão da temática Diversidade, Equidade em
Saúde e Cuidados de Enfermagem (Anexo) no currículo de graduação.
O processo acontecerá observando sempre as demandas
e especificidades do curso.
O propósito é que os/as graduandos/as desenvolvam
uma visão multicultural da saúde, assim como a habilidade de estabelecer um
relacionamento profissional terapêutico, culturalmente competente, firmando em
uma perspectiva anti-racista e anti-sexista na implementação do processo de
enfermagem.
Como parte da disciplina, é necessário incluir o
treinamento e prática da competência cultural enquanto uma habilidade
fundamental para o exercício da profissão de enfermagem.
Por ser o ensino-aprendizagem nas instituições de
ensino superior vinculado à pesquisa, o processo de inclusão da temática Diversidade,
Equidade em Saúde e Cuidados de Enfermagem deverá propiciar o
desenvolvimento de pesquisas multidisciplinares, assim como construir e
disseminar conhecimentos baseados em evidências científicas sobre desconstrução
do racismo e do sexismo, assim como sobre saúde da população negra e demais
grupos em situação de risco social com vistas a equidade em saúde.
No entorno do campus da UFF, onde acontece o curso
a inclusão do tema Diversidade, Equidade em Saúde e Cuidados de Enfermagem
nas atividades de ensino, pesquisa e extensão tem o potencial de causar como
uma positiva conseqüência o empoderamento das comunidades do entorno, assim
como a melhoria do controle social da saúde.
Para finalizar, observo que um positivo resultado
secundário decorrente da inclusão do tema Diversidade, Equidade em Saúde e
Cuidados de Enfermagem no curso de graduação será o estabelecimento da
instituição como uma defensora dos direitos da população negra e demais
populações em risco social à saúde, criando ou fortalecendo parcerias e
redes de trabalho estratégicas no entorno do campus, principalmente.
De qualquer forma, será uma experiência tanto
necessária quanto inovadora. Aprenderemos muito com ela.
PLANEJAMENTO DE DISICIPLINA – SEMESTRE |
|
Nome da Disciplina: Diversidade, Equidade em Saúde e Cuidados de
Enfermagem |
|
Código: MGE: |
Departamento de Execução: |
Carga Horária total: 45h Teórico: 30h Teórico-Prático: 15h Estágio: 00 |
|
Horário e Dias da Semana: teórico: Segunda?? Ensino Teórico-Prático: Sexta?? Estágio: |
|
Coordenador e Docentes da Disciplina: |
|
Descrição da Ementa: |
|
A
formação da enfermeira para a promoção da diversidade e equidade em saúde: Saúde e diversidade Disparidades e iniqüidades em saúde Determinantes sociais da saúde Defensoria, a Lei 10639 e sua relação com a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e demais políticas de Promoção da Equidade em Saúde Estereótipos, relações interpessoais e comunicação multicultural. Enfermagem transcultural: Avaliação e diagnóstico de enfermagem, planejamento de ações, estabelecimento de prioridades e avaliação de resultados quanto ao empoderamento de indivíduos, famílias e/ou grupos socialmente vulneráveis. |
|
Objetivos da Disciplina: |
|
Gerais: Contribuir para a implementação da Lei 10639 e da PNSIPN, entre outras políticas de promoção da equidade em saúde, com base na prática de enfermagem transcultural. Conceituar e e caracterizar os determinantes sociais de saúde da população negra e outros grupos em situação de vulnerabilidade social, focalizando no cuidado às causas subjacentes à doença, morte prematura e incapacidade, entre outras, assim como ao enfrentamento das ideologias discriminatórias. Capacitar a prestação do cuidado de enfermagem culturalmente competente e baseado em direitos humanos para os indivíduos, famílias, grupos, comunidades e instituições Específicos: - analisar as principais disparidades ou iniqüidades em saúde e suas implicações na prestação do cuidado de enfermagem para o indivíduo, família, grupos e comunidades. - Fazer a avaliação e o diagnóstico simplificado de situações de saúde da clientela vivenciando o racismo/sexismo ou em situação de vulnerabilidade social, de comunidades e de Micro-Regiões de Saúde. - Fazer planos de intervenção de enfermagem no contexto das ações de saúde, implementando e avaliando as ações executadas. - Expandir as bases teóricas na utilização dos conceitos das ciências sociais, humanas e comportamentais na prestação de um cuidado de enfermagem culturalmente competente. |
|
Competências a Serem Desenvolvidas: |
|
Incorporação dos múltiplos determinantes da saúde no
cuidado clínico de enfermagem Prestação do cuidado de enfermagem culturalmente sensível para uma sociedade pluri-étnica e com diversas orientações sexuais. Compartilhamento com o indivíduo, família ou comunidade sobre as decisões referentes ao cuidado de saúde Trabalho em equipes interdisciplinares Demonstração de um comportamento ético em todas as atividades profissionais Prestação do cuidado de enfermagem clinicamente competente baseado em evidências científicas Promoção do acesso ao cuidado de saúde àqueles(as) com necessidades de saúde não-atendidas em razão de sua vulnerabilidade social Prestação do cuidado de enfermagem centrado no relacionamento terapêutico com os clientes/famílias/comunidades Utilização da tecnologia de comunicação e informação efetiva e adequadamente no cuidado de enfermagem Demonstração de liderança Contribuição para o contínuo melhoramento do sistema único de saúde Defensoria de políticas públicas que promovam a equidade e protejam a saúde da população |
|
Estratégias de Ensino e Instrumentos de
Acompanhamento e Avaliação: O ensino sobre justiça social na área da saúde, especificamente, é o ensino sobre o que acreditamos ser o que deve ser, não em aspectos morais, mas de acordo com os direitos humanos mais fundamentais. Neste sentido, o ensino sobre diversidade, equidade em saúde e cuidados de enfermagem deve provocar respostas reflexivas, mas também experienciais por meio de estratégias de ensino-aprendizagem que conduzam o(a) aluno(a) nas atividades que o(a) ajudem a entender o que justiça social realmente significa e o que ela demanda de cada pessoa. Como referencial, sugere-se que a disciplina adote o ensino-aprendizagem experiencial uma vez que o conteúdo a ser abordado visa ao menos ajudar o(a) aluno(a) a confrontar seu status de poder & privilégio na sociedade e o impacto da sua condição na relação profissional de saúde-paciente. Sugere-se como principal estratégia de ensino em grupo utilizando o método de projeto associado com a resolução de problema-real. O instrumento de trabalho do(a) aluno(a) de enfermagem deve ser o processo de enfermagem focado para o indivíduo, família e/ou comunidade em situação de vulnerabilidade social. Assim, as atividades experienciais (teórico-práticas) podem acontecer por meio da observação da cultura organizacional da instituição de saúde, pela avaliação da pessoa, família ou comunidade em situação de vulnerabilidade social, pela observação de práticas culturais de saúde (rezadeiras, por ex), pela observação do acesso e qualidade do cuidado em saúde para doenças e problemas prevalentes em populações em situação de vulnerabilidade social, pela negociação do plano de ação com a pessoa, família, comunidade ou instituição de saúde, pela implementação do plano e sua avaliação, entre outros projetos. O acompanhamento e a avaliação do ensino-aprendizagem podem ser realizados pela construção de um portfólio ao longo da disciplina e pelo relatório final. Sem excluir ainda a avaliação pelo(a) usuário(a) participante do projeto, a auto-avaliação do(a) aluno(a) e avaliação pelos pares. |
|
Bibliografia básica Potter, P; Perry, AG. Diversidade no cuidado. In: Fundamentos de enfermagem. Cap 7, p 112-137, 5ª. ed, 2001 Smeltzer; Bare Perspectivas em enfermagem transcultural. Brunner e Suddarth - Tratado de Enfermagem Médico-Cirúrgica, 11 ed, cap 8, p 128- 138 Vol. 1, 2008 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n.992/2009, de 13 de maio de 2009. Institui a Política nacional de Saúde Integral da População Negra. BRASIL/MEC. Bibliografia consultada Adarkar, A et al The Buddha in the Classroom: Toward a Critical Spiritual Pedagogy. Journal of Transformative Education 2007; 5; 246. Disponível em http://jtd.sagepub.com/cgi/content/abstract/5/3/246 Cruz, I. African-Brazilian Population Health: developing equity in the Health System Online Brazilian Journal of Nursing. 2011; 9(3). Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3194 Souzas, R. Diversidade e estratégia saúde da família. Saúde Coletiva, 2009; 06(34):229. |
Apontamentos
- Não há apontamentos.
BNN - ISSN 1676-4893
Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Atividades de Enfermagem (NEPAE)e do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN).