AS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS:
SUBSÍDIOS PARA O ESTUDO DA ANGÚSTIA ESPIRITUAL[1].
Unitermos: Angústia
espiritual; Espiritualidade; Religião; Raça Negra.
ABSTRACT.
Afrikan-Brazilian
religions: issues related to the nursing diagnosis spiritual distress. This
paper discuss the Afro-Brazilian religions (candomblé, umbanda, quimbanda,
muslim, and vodum) and poits out the issues related to the spiritual distress as
a nursing diagnosis.
Key
words. Spritual distress; Spirituality; Religion; Afro-Americans.
Introdução
A
espiritualidade é uma dimensão humana que se desdobra em fenômenos ainda
pouco familiares à enfermeira. A ambigüidade presente no conceito associada a
preconceitos étnicos têm resultado no desconhecimento sobre o diagnóstico e
tratamento desses fenômenos na população brasileira, em geral, e na população
afro-brasileira, em particular.
Neste
estudo, consideramos que o diagnóstico de enfermagem é um julgamento clínico
sobre a resposta do indivíduo a um processo vital ou problema de saúde, sendo
que esta resposta fornece a base para a seleção das prescrições e para o
estabelecimento de resultados pelos quais a enfermeira é responsável (NORTH
AMERICAN NURSING DIAGNOSIS ASSOCIATION, 1990).
Para
nomear esta resposta do indivíduo, ou seja, este diagnóstico de enfermagem ,
utilizamos a Taxonomia I da NANDA - North American Nursing Diagnosis Association
(NÓBREGA; GARCIA, 1992) na qual estão descritos os fenômenos que podem, e
devem, ser diagnosticados e tratados pela enfermeira. Entre estes fenômenos , há
um, referente à transcendência do ser , classificado dentro do padrão de
resposta humana Valorizar.
Segundo
CRUZ;CRUZ (1991) Valorizar é um padrão de resposta humana que envolve o
julgamento sobre o significado ou a importância das coisas, ou seja, daquilo
que existe ou pode existir. Nesta área de estudo pouco tem sido
desenvolvido e, até o momento, existe apenas um diagnóstico de enfermagem
identificado: a angústia
espiritual.
Enquanto
um diagnóstico de enfermagem, a angústia espiritual é conceituada como um estado
no qual o indivíduo experimenta uma ruptura no princípio de vida, o qual
permeia todo o seu ser, integra e transcende sua natureza biológica e
psicossocial (NÓBREGA; GARCIA, 1992). A angústia espiritual compreende não
só uma preocupação expressa com o sistema de crenças, mas também o
questionamento sobre o significado da vida, do sofrimento, dos temas morais, éticos
ou das condutas terapêuticas, entre outros.
Os
fatores relacionados a este diagnóstico, isto é, os fatores que podem causá-lo
são os seguintes: separação de laços religiosos ou culturais e desafio ao
sistema de crenças e valores em razão das implicações morais ou éticas da
terapia ou de intenso sofrimento (NÓBREGA; GARCIA, 1992).
Estas
considerações iniciais sobre o diagnóstico de angústia espiritual nos
remetem de certa forma à religiosidade dos indivíduos, por essa razão,
destacamos a contribuição trazida pela pesquisa de HENSE (1989) sobre o
cliente cirúrgico e sua espiritualidade. A motivação para o nosso trabalho
surgiu quando HENSE , por ter entrevistado católicos e protestantes, afirmou
que o perfil dos seus depoentes era semelhante ao perfil religioso da maioria do
povo brasileiro.
Não
temos por propósito neste estudo contestar numericamente a afirmação de HENSE
(1989). Interessa-nos sobretudo discutir a composição plural desta nação e a
necessidade de trazer esta pluralidade para dentro das nossas pesquisas de modo
que os resultados revelem esta multiplicidade de culturas. Acreditamos que só
desta forma podemos neutralizar o discurso ideológico discriminador que ainda
permanece em nossa sociedade, objetivado pelos indicadores sociais que confirmam
o segregacionismo (FRY, 1988)
Fazemos
nossas as palavras de FERREIRA (1988) quando afirma que historicamente perdemos
contato com o mundo de onde viemos, a África, e conseqüentemente perdemos
contato com a cultura popular, com a religião e com a ancestralidade.
Entendemos que já é tempo de retomar este contato, de conhecer um pouco mais
sobre nós mesmos e sobre as nossas origens não-européias.
No
que se refere à enfermagem, em especial, há o desafio de realizar pesquisas
que sejam congruentes com as realidades vividas por populações etnicamente
diversas. Isto exige o re-exame das bases teóricas, da representação da
amostra, dos instrumentos de coleta de dados e do referencial de análise.
Requer, principalmente, avaliação sobre a relevância dos achados dentro do
contexto de forças e limitações. PORTER; VILLARRUEL (1993) também questionam
a ausência dos conceitos de cultura (etnia) ou raça (cor) nas pesquisas de
enfermagem, uma vez que estes conceitos conotam diferenças para os referenciais
teóricos. Consideram ainda que a perspectiva unicultural diminui a capacidade
do pesquisador em elaborar interpretações alternativas. As autoras são
taxativas em relação às pesquisadoras da área de diagnósticos de
enfermagem, entre as quais nos incluímos: Se as enfermeiras pesquisadoras pretendem nomear as respostas
humanas à saúde e à doença, elas têm a obrigação de lidar com as
diferenças da forma mais acurada possível.
Assim,
partindo dos possíveis fatores relacionados ao diagnóstico de angústia
espiritual, consideramos que a dissolução sistemática dos valores culturais
da etnia negra pode ser determinante para este diagnóstico, sendo além disso
agravada pela forma atávica com que se considera as religiões de origem
judaico-cristãs hegemônicas na sociedade brasileira.
Diante
do que foi anteriormente discutido, o nosso propósito, neste estudo, é,
contrapondo a afirmação de HENSE (1989), apresentar a vertente afro-brasileira
da religiosidade responsável, neste quase meio milênio de história, por uma
significativa influência na cultura de 63 milhões de brasileiros descendentes
de escravos (SANTOS, 1988)
O
viés ideológico, caracterizado pela ausência do
item cor/raça nos documentos sobre a população brasileira, tem por base a
tese assimilacionista na qual os não-brancos ocupam uma posição subalterna
devido à classe, não a raça. Este viés é responsável pela escassez de
pesquisas sobre o processo bem-estar/saúde/doença/mal-estar em pessoas da
etnia negra (CRUZ, 1994).
A
consciência de que o mito da democracia racial é uma forma sutil e perversa de
alijar a parcela afro-brasileira desta sociedade, somada ao compromisso político
com este segmento de onde viemos, para onde voltamos e do qual nunca saímos,
motivou-nos a realizar este estudo. Nele tangenciamos o candomblé, a umbanda, a
quimbanda, o islã e o vodum.
Da
literatura consultada, procuramos extrair elementos religiosos relacionados ao
processo saúde-doença. Sempre que possível, estes elementos foram organizados
conforme as categorias identificadas por HENSE (1989) para a espiritualidade,
tais como: reconhecimento de um ser superior, busca de significado para a doença,
apoio espiritual, confiança e afiliação religiosa.
Porém,
antes de iniciar a abordagem sobre as religiões afro-brasileiras, mesmo podendo
incorrer no risco da obviedade, gostaríamos de enfatizar que há diferença
entre espiritualidade e religiosidade. A religião (do latim religare
significa manter junto) fornece ao indivíduo valores, códigos e rituais
que influenciam tanto a vida do fiel quanto daquele que não é adepto. A religião
enquanto influência cultural tem recebido pouca atenção da enfermagem,
segundo MANSEN (1993).
A
ênfase que se dá apenas às práticas religiosas faz com que pensemos que as
necessidades espirituais da clientela podem ser preenchidas com ritos, rituais e
presença de sacerdotes. Aprendemos a reconhecer como indicadores espirituais a
leitura de bíblias e a visita de clérigos apenas das religiões judaico-cristãs,
negligenciando outras manifestações religiosas e sinais relacionados a
processos espirituais internos, caracterizados pela meditação e preocupação
com a transcendência, por exemplo. Assim, ainda que neste estudo abordemos a
angústia espiritual pela sua vertente religiosa, entendemos que este diagnóstico
se insere numa categoria muito mais ampla.
Fundamentos das religiões
afrobrasileiras
Um
aspecto crucial neste estudo sobre a religiosidade afro-brasileira reside no
fato de compreender os cultos de origem africanas enquanto verdadeiras religiões
e não como seitas. Cabe ressaltar que as religiões afro-brasileiras possuem um
corpo sacerdotal, filosofia, ritos, enfim, uma estrutura que as caracterizam
como instituições. Considerá-las seitas é, na realidade, uma tentativa de
reduzir a sua importância e de classificar as pessoas que as praticam como um
punhado de fanáticos.
A
rigor, as religiões afro-brasileiras são patrimônio desta nação e compõem,
particularmente, o universo cultural da raça negra brasileira que foi seqüestrada
da África para a Europa e Américas e mantida nestes continentes na condição
de escrava, sob tortura física e psicológica, por mais de quatrocentos anos
(CONCEIÇÃO, 1993). Temos que reconhecer que um século de abolição do
escravismo não é suficiente para alterar uma sólida estrutura ideológica
construída para justificar a exploração e a negação das pessoas negras
enquanto seres humanos auto-determinados e transcendentes.
Portanto,
não esperemos passivamente que outros quatro séculos transcorram para que
finalmente as estruturas e instituições sociais se alterem em benefício dos
descendentes dos escravos e escravas africanos.
Mesmo
após o fim oficial do escravismo, as religiões afro-brasileiras foram
relegadas à clandestinidade, sendo objeto de repressões policiais sistemáticas
ao longo da primeira metade deste século (REIS, 1988; BRAGA, 1993). As religiões
afro-brasileiras constituíram focos de resistência e luta contra o estatuto da
escravidão, contra a repressão eclesiástica e policial.
Conseguiram,
mesmo sob repressão, manter suas práticas e influenciar o catolicismo com
tradições mágicas e pagãs, por meio das irmandades leigas de homens
de cor (São Benedito, Santa Efigênia, N. Sra. do Rosário, entre outras).
Participamos nos espaços exteriores às irmandades das inúmeras encenações
que nos remetem à cosmogonia e à saga africana na forma de Reizado, Congada,
Moçambique, Maracatu, Folia de Reis, Carnaval e lavagem das escadarias da
igreja do Bonfim, entre outras tantas (LUZ, 1993). Na atualidade, a luta das
religiões afro-brasileiras está voltada contra o preconceito e a desinformação,
além da manutenção das tradições e abandono do sincretismo.
É
frente a este referencial que apresentamos a seguir alguns aspectos sobre estas
religiões, obtidos principalmente nos textos de História e Ciências Sociais,
visando contribuir para a discussão sobre o tema dentro da área da Saúde..
O
Candomblé
A palavra candomblé
origina-se de candombe (negro, em
banto) e ilê (casa, mundo, em iorubá)
e significa, portanto, casa de negro. O candomblé chegou ao Brasil com os
negros iorubás e jejes (fon ou mina) escravizados, que na África habitavam a
região onde hoje é a Nigéria e o Benin, e com os negros bantos, da parte sul
do continente (LODY, 1987).
Em
razão dos diversos grupos étnicos negros, encontramos dentro do candomblé várias
nações ou variantes, a saber: Angola (banto), Kêto-Nagô (iorubá), Jeje (fon),
Jexá ou Ijexá (iorubá), Caboclo (afro-brasileiro), e Congo (banto) (RAMOS,
1979; LODY, 1987; LOPESet al, 1987)
No
candomblé, cultua-se como ser superior Olorum
(senhor do céu) ou Olodumaré (onipotente
e eterno), divindade suprema que não tem representação material. Olorum criou
o mundo em quatro dias, fez uma aliança com os seres humanas, representada pelo
arco-íris, e se recolheu para descansar, entregando a solução dos problemas
do mundo aos orixás (PORTUGAL, 1986).
Os
orixás, divindades intermediárias, juntos com Olorum, proporcionam apoio
espiritual ao fiel, ao povo de santo. Os orixás governam o mundo, a humanidade
e o ser humano. Mas também são parte deste mundo, enquanto elementos da
natureza; parte da humanidade, enquanto antepassados míticos; e parte do ser
humano, enquanto componentes de sua personalidade.
Dentre
os orixás cultuados no Brasil, destacamos Omolú e Ossãe por apresentarem uma
estreita relação com os conceitos de doença e cura. Omolú, saudado pela
expressão Iatotô!- é o orixá das doenças da pele, responsável também
pelas epidemias, mortes e desgraças que afetam a comunidade. Ossãe, que tem
por saudação o grito Eueê ô! - é
um orixá cujo domínio refere-se ao conhecimento das folhas e ervas próprias
para os banhos e bebidas ritualísticas, para os sacrifícios e para a cura das
doenças.
No
candomblé, as divindades têm características humanas, dadas por virtudes e
defeitos; e os fiéis possuem, por sua vez, características divinas, pois além
de serem filhos dos orixás, carregam o orí
, termo que designa a cabeça, sendo, além disso, uma divindade guardiã do
destino (VOGEL et al, 1993).
No
candomblé, não há a idéia de pecado, de inferno ou de purgatório o que,
contudo, não implica em um existir permissivo. O referencial de vida é a própria
vida uma vez que a existência transcorre em dois planos paralelos: no aiê
(mundo) e no orum (além), Assim,
cada elemento material tem seu duplo espiritual e abstrato no orum e cada
elemento existente no orum tem sua
representação material no aiê
(SANTOS, 1993). Segundo VOGEL et al (1993), a vida e a morte são variações de
sentido inverso e ambas dependem do ser humano que faz a sua vida como também
pode fazer a sua morte.
No
que se refere à afiliação, existe no candomblé. Além do culto aos orixás,
cerimônias dirigidas para os espíritos dos antepassados femininos (Geledé) e
masculinos (Egun), presentes nas nações Kêto e Jeje. Segundo LUZ (1983), os
ancestres femininos, pela imensa força que possuem, não se caracterizam pela
aparição, consubstanciando-se em máscaras e animais; já os eguns possuem
culto especial, exclusivamente masculino.
A
religião nagô ou iorubá ou candomblé, historicamente próxima às camadas
mais resistentes e conscientes de sua origem africana, é celebrada em terreiros
ou roças. O seu altar é denominado peji
e nele está ‘plantado’ o precioso axé,
força que assegura a existência dinâmica (SANTOS, 1993; VOGEL et al,
1993).
No
peji estão guardados ainda os assentamentos
dos fiéis. Estes assentamentos são
objetos ou elementos da natureza cuja substância e configuração abrigam a força
dinâmica do orixá que representa o apoio espiritual do fiel. Por ser uma
representação viva do orixá, o assentamento
requer alimentos e cuidados especiais implementados durante liturgias
privativas, denominadas ossé. Estas
cerimônias são conduzidas pelo sacerdote ou babalorixá
(pai de santo) ou pela sacerdotisa, a ialorixá
(mãe de santo).
Cabe
destacar o reconhecimento e o poder que a mulher exerce dentro do candomblé,
poder este que geralmente lhe é negado na sociedade. O poder feminino das Iás
ou Iabás nas comunidades nagô é profundamente venerado por assegurar não só
a continuidade física, mas também de plantar e semear os modos e valores do terreiro
(SANTOS; SANTOS, 1993)
Por
ser uma religião essencialmente iniciática, a liturgia do candomblé só é
conhecida pelos fiéis que se submetem ao processo de iniciação. Os ritos
iniciáticos, cujos conhecimentos são transmitidos de forma oral, acontecem ao
longo de toda a vida religiosa e possuem duração variável (SANTOS; SANTOS,
1993). Desta forma lenta e gradual desvelam-se os mistérios e segredos do
candomblé e a primeira estação desta jornada é o borí.
A palavra borí designa o ato de dar comida à cabeça, concebida como algo à
parte, especial e sagrado (VOGEL et al, 1993)
A
morte só se intimida com o sacrifício e este depende de se saber o que desejam
os orixás, por intermédio do jogo dos búzios. Em algumas cerimônis acontece
o sacrifício ritualístico de animais para oferecimento aos orixás e conseqüente
acumulação de axé. A prática do sacrifício de animais costuma ser contestada
pelos não adeptos. Cabe observar, porém que, historicamente, o que os
africanos possuíam de mais precioso para ofertar ao orixá era a sua comida da
qual ele obtinha a sua força vital ou axé.
Assim, nestas cerimônias algumas partes do animal sacrificado são ofertadas ao
orixá e o restante do animal, transformado em comidas saborosas, é comungado
entre os participantes da festa.
A
riqueza da liturgia do candomblé e de sua cosmogonia, juntamente com suas
implicações para o processo saúde-doença, extrapolam o âmbito deste estudo.
Entretanto, apontamos para a necessidade de se conhecer este universo para que
possamos identificar quais características definidoras os clientes adeptos
desta religião apresentam quando manifestam angústia
espiritual e quais fatores relacionados desencadeiam este diagnóstico.
A
Umbanda
A umbanda
originou-se entre a população de etnia banto (região de Angola, Moçambique e
parte sul da África) que trouxe para o Brasil uma religião voltada para o
culto dos ancestrais africanos e familiares que durante a sua passagem pela vida
se distinguiram pela sabedoria (MAGNANI, 1986; LUZ, 1993).
Os
bantos (que na língua quibundo significa humanidade) foram fixados, no Brasil,
principalmente em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, nas atividades agrícolas
e auríferas.
Na
umbanda acredita-se na idéia de um ser superior, Zambi,
que exprime a infinitude da existência. Além disso há a crença na existência
interativa entre o mundo visível e o mundo invisível, na possibilidade de
estabelecer por meio do rito, relações com o mundo dos invisíveis,
propiciando a sua atuação no mundo dos vivos.
Cabe
ressaltar que a umbanda (e o candomblé numa escala menor) fez do sincretismo a
sua ponta de lança contra a discriminação religiosa, isto é, só restou ao
negro, segundo LUZ (1993) africanizar o cristianismo. Adotou as imagens católicas
para poder continuar cultuando as divindades banto-iorubá, porém dentro de uma
dinâmica ritual que em nada se aproxima do culto católico (LUZ, 1983).
Observamos, porém, que a associação entre os orixás e santos católicos não
aconteceu de forma aleatória, mas a partir das referências dadas pela
cosmogonia iorubá e banto.
Quanto
à afiliação religiosa, os cultos umbandísticos são denominados giras
, enquanto que o sacerdote ou sacerdotisa, pai
ou mãe de santo. Os iniciados são conhecidos como médiuns
e incorporam os espíritos dos ancestrais (eguns); ao contrário do candomblé
no qual o rito de possessão significa a manifestação da divindade ou orixá
no corpo de seu filho. No candomblé, os espíritos dos mortos ou eguns
não possuem o corpo do fiel, eles manifestam-se na sua roupa (MAGNANI,
1986; LOPES et Al, 1987).
Quanto
à busca de um significado para a doença, podemos depreender que o equilíbrio
da existência se caracteriza pela atuação de fluxo de força mística,
cabendo aos rituais umbandistas manter afastados dos fiéis as forças invisíveis
que regem doenças, perturbações, infelicidade e fome, entre outros fenômenos
(LUZ, 1983; 1993).
Segundo
MOURA (1988), a umbanda é a religião mais difundida no Brasil, tendo em vista
a prática de medicina popular que acontece em seus terreiros. Esta observação
de MOURA nos remete para as formas como a população supre as carências
advindas ou da precariedade do Sistema de Saúde ou do reducionismo dos
paradigmas utilizados pelos profissionais da área.
A
Quimbanda
Para
melhor compreensão sobre o surgimento da quimbanda entre as religiões
afro-brasileiras é necessário, primeiramente, conhecer um pouco da trajetória
do culto de Exú, desde a África até o Brasil.
Na
África, Exú está associado ao poder da fecundação e é representado por uma
imagem fálica (devido ao formato da sua cabeça ser igual ao de um pênis, Exú
não carrega nada sobre ela e isto lhe confere uma característica de independência).
Somado a este poder, existe ainda o de ser intermediador entre os seres humanos
e os orixás.
Exú
é um princípio que representa e
transporta o axé , participando forçosamente
de tudo, assim, cada ser existente no universo (orum
e aiê) tem o seu Exú, assim como no catolicismo cada um tem o seu anjo de
guarda e para ele acende velas e pede proteção. Sem Exú, portanto, nada se
movimenta, nada se desencadeia, nenhuma ação é concretizada (SANTOS, 1993;
LUZ, 1993).
Cabe
a Exú garantir o cliclo da existência, promovendo a relação sexual. Está
associado à placenta responsável pelo desenvolvimento fetal. Exú é responsável
pela circulação do interior do corpo, pela respiração, pela sucção, pela
ingestão de alimentos e pela comunicação. Abre e fecha os caminhos e
acompanha o orixá Ikú (morte).
No
Brasil, o culto a Exú concentrou-se mais no seu poder de mensageiro e
intermediador, tendo em vista que ao escravo africano não interessava a procriação,
mas sim a proteção de seus orixás na sua luta pela liberdade. Assim, o poder
de Exú cresceu de tal forma a ponto deste princípio da existência ser
cultuado como uma divindade, como um orixá.
Nos
cultos iorubas, ele é sempre o primeiro a ser saudado e recebe parte das
oferendas de qualquer ritual, permitindo assim o sucesso da liturgia. Na
umbanda, as giras de Exú, de um modo
geral, acontecem depois da meia-noite.
No
Brasil, apenas no culto iorubá a imagem representativa de Exú permanece com
sua característica fálica. Diante da repressão eclesiástica e, tendo em
vista que o espaço físico de Exú são as estradas, as encruzilhadas e os portões,
os negros escravizados adotaram do catolicismo a representação do diabo para,
com esta imagem, temida pelos brancos, afugentar dos terrreiros os senhores e
neles imprimir o medo da quimbanda (feitiçaria,
em banto).
A
quimbanda surge como uma manifestação contrária ao embranquecimento da umbanda, caracterizado pela manutenção do
sincretismo religioso e pelo discurso judaico-cristão kardecista. Mas, em
decorrência da imagem sincrética e ideológica de Exú, principal divindade da
quimbanda, esta religião é percebida como culto do mal, sofrendo portanto a
maior carga de repressão (LUZ, 1983; MOURA, 1988).
Atribui-se
aos sacerdotes e sacerdotisas desta religião a capacidade de fechar o destino
das pessoas e abrí-los para atuação dos espíritos malignos. Porém, cabe
ressaltar que na cosmogonia afro-brasileira os conceitos de bem
e mal; certo e
errado são contextuais e dinâmicos, não representando categorias
prescritivas ou maniqueístas (LUZ, 1993).
É
na quimbanda que as camadas mais proletarizadas encontram as condições para fechar
o corpo e, assim, protegerem-se das agressões de uma sociedade excludente e
violenta.
O
Islã
O
tráfico para o Brasil em sua última fase coincide com o processo de islamização
da África, em regiões do Senegal e no norte da Nigéria. A religião de Maomé
e a cultura malê chegaram no Brasil com os negros escravizados. Os malês ou muçulmis
eram adeptos de um islamismo híbrido no qual o ser superior e único era Olorum-uluá
(Olorum, iorubá e Alá, árabe).
Foi
esse islamismo que criou a mítica de uma etnia altiva, insolente, insubmissa e
revoltosa, conhecida como os negros minas.
Assim chamados todos aqueles cativos vindos da região do antigo Sudão e
embarcados no forte de São Jorge da Mina (LOPES et al, 1987).
Quanto
ao apoio espiritual, embora monoteístas, os malês não se separavam de seus
talismãs e mandingas (breves e escapulários) que eram fragmentos de papel com
inscrições em árabe do Alcorão, a bíblia islâmica. Não é sem razão que
o termo mandinga faz parte do nosso
vocabulário significando feitiço, porque os malês eram temidos pelas suas
feitiçarias e pelo poder de seus patuás.
No
que se refere à categoria afiliação religiosa, temos que o sacerdote, o Imã,
era conhecido como lemano e seu
auxiliar, como ladano, havendo ainda
um corpo de conselheiros constituídos pelos idosos. A oração, ou salah, era praticada cinco vezes ao dia. Por motivos óbvios apenas
a peregrinação à Meca não acontecia, no mais todas as práticas muçulmanas
eram observadas pelos malês, tais como: não comer carne de porco, usar túnicas
brancas e gorros (filá) vermelhos,
praticar a poligamia, entre outras.
Do
islamismo malê, enquanto prática religiosa, não existe mais nada no Brasil
visto que estes escravos ou foram mortos em sucessivas rebeliões na Bahia ou
foram deportados por esta mesma razão (RAMOS, 1979).
O
islamismo negro ressurgiu com os imigrantes de origem árabe estando
praticamente restrito a esta comunidade. Mas, ainda que nos faltem dados
discretos, cabe ressaltar o surgimento de uma nova forma de islamismo de origem
afro-caribenha denominado rastafarianismo (nome derivado de Ras Tafari, primeiro
nome de Haillé Salassié, imperador da Etópia).
Os
rastas cultuam Jah
e têm uma cultura baseada em alimentação vegetariana e numa forma própria
de cuidar da lã (cabelo) que não
pode ser penteada, apenas trançada em dreadlocks.
Enquanto naturistas não bebem bebidas alcoólicas, não usam drogas, nem fumam
tabaco. Por considerarem a Canabis sativa
uma erva sagrada, permitem o seu fumo. Muitas de suas práticas os tornam
semelhantes aos muçulmanos, principalmente no que se refere ao papel subalterno
que reservam às mulheres.
O
Vodum
Das
religiões afro-brasileiras, o vodum é provavelmente a menos conhecida e também
a de menor difusão.
O
vodum (vodun, significa orixá) chegou ao Brasil dentro dos navios tumbeiros que
transportavam como carga os negros escravizados provenientes do Daomé, etnia
jeje. Nesta religião cultua-se como ser superior
Dan ou Dangbé , a serpente
sagrada.
O
vodum é uma religião que só possui sacerdotisas, estando o homem totalmente
excluído destas funções. Esta prática religiosa, pouco conhecida ainda, é
encontrada na cidade do Recife e em Salvador, de forma adulterada, segundo RAMOS
(1979). A sua melhor representação é praticada em São Luís do Maranhão em
um dos mais antigos templos religiosos brasileiros, a Casa das Minas.
Considerações Finais
Em
síntese, a espiritualidade tem vertentes relacionadas à religiosidade e à
transcendência. A espiritualidade é uma dimensão humana na qual
existem fenômenos, como a angústia espiritual, que cabe à enfermeira
diagnosticar e tratar de forma autônoma.
Entretanto,
para que possamos compreender o processo de bem-estar/saúde/doença/mal-estar
do povo brasileiro e, dentro deste processo os aspectos referentes à
espiritualidade e à angústia espiritual, temos que estudá-lo na sua
totalidade, sem excluir nenhum segmento.
Neste
sentido, o papel da religiosidade afro-brasileira nas questões de saúde e doença
precisa ser mais estudado pelos profissionais da área. Pela leitura dos
trabalhos históricos, tomamos conhecimento, por exemplo, que em 1685, a parda
Clara Garces foi denunciada por viver curando a todos que a sua casa vinham
doentes, usando de calundus e
bonifrates. Em uma época em que a assistência para os problemas de saúde
dependia em grande parte do uso de ervas, a vida e a morte de muitos dependia de
curandeiras e curandeiros (REIS, 1988).
Isto
não é um passado morto. Concordamos com REIS (1988) quando afirma que estas
formas de compreender o mundo e resolver os problemas da existência continuam
fazendo parte do nosso cotidiano. O pensamento mágico, elemento das religiões
afro-brasileiras e do catolicismo popular, representa um aspecto importante das
relações sociais e de poder, e pela lógica desse pensamento,
as pessoas não caem doentes ou sofrem infortúnios só por obra da
natureza, do indivíduo comum ou do destino. As pessoas são enfeitiçadas e há
os especialistas que enfeitiçam e os que curam.
Acrescentaríamos que neste processo encontramos, provavelmente, um mesmo
especialista que enfeitiça, cura e cuida.
Ainda
que neste estudo tenhamos apenas tangenciado o complexo universo das religiões
afro-brasileiras, em especial no que se refere ao adoecer,
curar e cuidar, vemos que além de
Deus ou Jeová há Olodumaré e Zambi, que o apoio espiritual pode não estar
apenas na bíblia mas em assentamentos, colares e talismãs. A assistência
espiritual pode ser dada para uns pelo pastor ou padre, mas para outros, pela
Ialorixá.
No
tocante ao significado de angústia espiritual para os adeptos das religiões
afro-brasileiras em particular, somente uma investigação desenvolvida junto a
esta população poderá trazer fatos elucidativos. Para tanto é necessário
primeiramente vencer a barreira do preconceito e da desinformação sobre as
culturas negras e corrigir assim as distorções ideológicas existentes.
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[1]
Publicado
originalmente na Revista da Escola de Enfermagem da USP, v28, n. 2, p.
125-36, 1994
[2]
Doutora em Enfermagem pela USP - São Paulo. Professora Titular do Deptº de
Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade
Federal Fluminense. Coordenadora do NESEN - Núcleo de Estudos sobre Saúde
e Etnia Negra. Pesquisadora do CNPq (1994).
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BNN - ISSN 1676-4893
Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Atividades de Enfermagem (NEPAE)e do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN).