IDENTIDADE
NEGRA E SAÚDE[1]
Isabel
Cristina Fonseca da Cruz[2]
Abstract: This study is based on
anthropological bibliografy and refers to the arousal of risk factors of
hypertension in the Africans slaves in Brazil and their prevalence until today..
Key-words - African-Brazilian- Nursing History
Introdução:
A consciência de que o mito da democracia racial é uma forma sutil e
perversa de alijar a parcela afro-brasileira desta sociedade, somada ao
compromisso político com este segmento de onde viemos, para onde voltamos e do
qual nunca saímos, motivou-nos a aceitar o convite para participar do Seminário
Nacional: a Comunidade Afrobrasileira e a Epidemia de HIV/AIDS, promovido pela
ABIA.
Ainda que o tema proposto seja Identidade Negra e Saúde, interessa-nos
sobretudo discutir a composição plural desta nação e a necessidade de trazer
esta pluralidade para dentro das nossas pesquisas de modo que os resultados
revelem esta multiplicidade de culturas. Acreditamos que só desta forma podemos
neutralizar o discurso ideológico discriminador que ainda permanece em nossa
sociedade, objetivado pelos indicadores sociais negativos que confirmam o
segregacionismo.
No que concerne à discussão sobre identidade negra e saúde, temos que
ter em mente a situação histórica que foi a escravidão, resultante do
sequestro dos povos negros africanos para o Brasil, e todas as conseqüências
negativas decorrentes da aplicação deste sistema econômico nas esferas
bio-psico-sociais dos escravos e seus descendentes mesmo após a extinção do
regime. Consideramos portanto que várias doenças presentes hoje na população
negra brasileira podem ser provenientes da introdução de fatores de risco a
que antes, na África, em liberdade, essas pessoas não estavam expostas.
Assim,
muito da nossa identidade negra, da nossa saúde e da nossa doença têm relação
com o histórico de escravidão e exclusão vividos ao longo de quase quinhentos
anos de Brasil.
Desenvolvimento
Identidade Negra - em busca de uma
identidade humana.
Ciente do fato que o racismo assume diversas formas, conforme o período
histórico, faço minhas as palavras de Neuza Santos Souza quando em sua
dissertação de mestrado afirma que saber-se
negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade,
confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a
expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de
comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.
Ser negro é tornar-se negro. Uma vez negro, deve tornar-se humano.
Saúde
Historicamente perdemos contato com o mundo de onde viemos, a África, e
com o nosso passado de escravidão e de lutas libertárias conseqüentemente
perdemos contato com a nossa cultura popular, com a religião e com a
ancestralidade. Entendemos que já é tempo de retomar este contato, de conhecer
um pouco mais sobre nós mesmos e sobre as nossas origens não-européias para
construirmos um conceito próprio de saúde.
Portanto, o significado de saúde deveria no Brasil ser visto em muitos
contextos: histórico e cultural, social e individual, científico e filosófico.
Ainda que estes significados possam ser por vezes contraditórios ou
superpostos, eles sempre existirão nos variados contextos da experiência
humana.
Para nós que temos por objetivo promover a saúde, o referencial holístico
é mais adequado uma vez que a saúde é melhor compreendida se cada pessoa é
vista como a integração das energias da mente, do corpo, do espírito e do
ambiente. A saúde é melhor definida, no nosso entendimento, como um estado de bem-estar.
O bem-estar existe quando as emoções são livres, a mente está forte, o
estilo de vida é saudável e a expressão espiritual é completa.
Independentemente dos vários conceitos sobre saúde, é bom ressaltar
que quase nunca usuários do serviço de saúde e profissionais de saúde
partilham a mesma opinião a respeito. Isto talvez explique a pouca adesão às
terapias propostas pelos profissionais. É imperativo que os profissionais de saúde
compreendam que os clientes têm diferentes visões de mundo e interpretações
sobre saúde e doença, com base na sua cultura e crenças religiosas.
A diferença entre a medicina hegemônica e a medicina popular mágico-religiosa
está principalmente no tipo de relação entre a pessoa e o curador. O
curandeiro, por exemplo, está geralmente mais próximo, mais íntimo da pessoa
do que o profissional de saúde porque o curandeiro entende o problema a partir
de um contexto cultural, fala a mesma linguagem e partilha a mesma visão de
mundo.
Embora não haja uma definição única de cultura, esta geralmente é
entendida como um conjunto de valores, crenças, comportamentos e costumes
partilhados por um grupo de pessoas e que passa de uma geração para outra. A
etnia, por sua vez, é um sentimento de identificação associado com a cultura
de um grupo com uma herança social e cultural comum. As características de um
grupo étnico incluem linguagem e dialeto comum, raça e práticas religiosas,
As pessoas partilham as mesmas tradições, símbolos, músicas e preferências
alimentares, entre outros aspectos.
Consideramos, portanto, que ao se pensar em identidade negra brasileira,
temos que observar o conceito de etnia à luz de uma estrutura racista. Neste
sentido, muitas pessoas da raça negra podem não apresentar nenhuma identificação
com a etnia negra, partilhando porém os valores e a cultura do grupo hegemônico.
Todavia, também podemos encontrar pessoas da raça branca que pela porta da
religião (candomblé) ou do casamento passam a partilhar os valores da etnia
negra inclusive se identificando como membro do grupo.
Doença
Num contexto de crenças tradicionais sobre doença,
esta pode ser causada por um grande número de agentes, tais como a possessão
espiritual e o mau-olhado. A doença pode ser atribuída a pessoas que têm a
habilidade de tornar outros doentes (por exemplo, uma ialorixá). As pessoas que
crêem nestas forças devem envidar esforços para cuidarem de si próprias,
evitando as situações de inveja, ódio ou ciúme. Se a saúde é vista como
uma recompensa por um bom comportamento, todo esforço é feito para evitar as
situações nais quais possa-se comprometer o comportamento social ou religioso.
Pelo contexto da ciência hegemônica, a
epidemiologia nos garante que a doença atinge primeiramente, e de forma mais
grave, os pobres e, se nesse país negro e pobre são quase sinônimos, haja
vista não haver qualquer indicador social a revelar o contrário, então
podemos dizer que a doença está inscrita no cotidiano da etnia negra.
Mesmo em condições de transmissão teoricamente
iguais a doença é seletiva e as instituições de saúde, historicamente,
acentuam esse processo; o isolamento, a segregação dos doentes pobres, a
diferença de tratamento e assistência aos ricos e poderosos, o desemprego, a
fome auxiliam a sua compreensão.
Além disso, a doença é um elemento de
desorganização e reorganização social, tornando freqüentemente
mais visíveis as articulações essenciais
do grupo, as linhas de força e as tensões que o traspassam. O acontecimento mórbido
pode ser o lugar privilegiado de onde melhor observar o significado real dos
mecanismos administrativos, as relações de poder ou a imagem que a sociedade
tem de si mesma (REVEL e PETER 1988).
Todavia, em que pese a morbi-mortalidade das diversas doenças, no Brasil
ignora-se sistematicamente o seu impacto sobre a população de etnia negra.
Quando há necessidade, por algum motivo, dos pesquisadores brasileiros fazerem
referência à população negra são obrigados a recorrerem à literatura
internacional e, daí, traçarem o paralelo entre um grupo e outro (Cruz, 1990).
Lançam mão deste recurso por ser bem mais fácil do que introduzir nos
documentos da área de saúde o item cor/etnia e, mais do que isso, iniciar o
processo ensino-aprendizagem sobre as particularidades étnicas da clientela a
partir de uma perspectiva humanística, não-racista.
Sistema de Saúde
Uma rápida olhada nos usuários dos serviços públicos
de saúde, no Brasil de hoje nos coloca o caminho da antropologia como um dos
elementos da história social - a que nos interessa: lá estão,
invariavelmente, a população marginalizada, formada maciçamente de pobres,
particularmente, de crianças, velhos e mulheres, em sua quase totalidade, de
etnia negra ou descendentes.
No que se refere à área da saúde, em especial, há o desafio de
realizar pesquisas que sejam congruentes com as realidades vividas por populações
etnicamente diversas. Isto exige o re-exame das bases teóricas, da representação
da amostra, dos instrumentos de coleta de dados e do referencial de análise.
Requer, principalmente, avaliação sobre a relevância dos achados dentro do
contexto de forças e limitações. Estão ausentes os conceitos de cultura
(etnia) ou raça (cor) nas pesquisas da saúde, uma vez que estes conceitos
conotam diferenças para os referenciais teóricos. A perspectiva unicultural
diminui a capacidade do pesquisador em elaborar interpretações alternativas.
São ignoradas as práticas tradicionais utilizadas para prevenir e
tratar as doenças. A medicina popular (chás, ervas, minérios, etc) e a
medicina mágico-religiosa (bori, rezas, curas, etc) coexistem em tensão
crescente com a medicina moderna.
Dentre as práticas tradicionais, destacamos ainda o uso de objetos
protetores que têm poderes místicos, o uso dos alimentos para prevenção ou
cura. Cabe observar que determinadas religiões podem levar os clientes a
recusar certos alimentos (peixe de pele) produtos terapêuticos como, por
exemplo, a insulina de porco para o tratamento de diabetes.
Destacamos
ainda as práticas religiosas para prevenção e cura de doenças como as orações,
a queima de velas, as oferendas, entre outras.
Em observações não sistematizadas,
verificamos que
vários modelos de histórico de enfermagem e prontuários não possuem
na parte referente a identificação
do cliente o item etnia/cor. A
escassez e/ou inexistência
de dados
sobre a
morbi-mortalidade de pessoas de etnia negra no Brasil dificultam, portanto, a
realização de uma análise sobre os indicadores
das condições de vida e saúde deste
grupo étnico em comparação a outros.
Esta ausência de dados impossibilita o estabelecimento de uma política
de saúde, voltada
para as
especificidades da
população negra. Conseqüentemente, a ausência do item cor/etnia
nos registros da área de saúde
parece se refletir no numero escasso de trabalhos publicados sobre o processo saúde/doença
entre pessoas
de etnia negra (CRUZ, 1990).
Quando se argumenta sobre
a necessidade
de inclusão (ou re-inclusão) do item cor nos históricos e
pesquisas, recebe-se em
troca contra-argumentos
referindo ser
esta uma proposta discriminatória
que prega inclusive um modelo bi-racial,
nos moldes americanos.
Todavia, entendemos que a questão racial não é secundaria uma vez
que em nosso
trabalho cotidiano
de enfermagem,
utilizamos como
referenciais a teoria transcultural e de
autocuidado. Assim,
o conhecimento sobre grupos étnicos, seus comportamentos, crenças
e valores relativos à saúde e à doença é,
portanto, uma
necessidade para o exercício
de qualquer profissão ou
atividade na área de saúde.
No sentido de quebrar este silêncio e esta cegueira sobre tudo que se
refere à etnia negra brasileira, o Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia
Negra - NESEN foi criado com o objetivo de realizar pesquisas sobre o tema e
estimular discussões a respeito. Em razão do escasso número de
trabalhos científicos
sobre o processo saúde/doença
da população negra
brasileira e
da necessidade
de romper as
fortes estruturas
erguidas pela
ideologia do
branqueamento, o NESEN
- Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra que busca construir
um conhecimento
referente à etnia negra sob sua própria
perspectiva, têm
desenvolvido estudos
e pesquisas sobre esta temática. O NESEN foi criado para realizar,
assessorar e divulgar pesquisas sobre o tema, além de estimular as discussões
que favoreçam a compreensão da etnia negra brasileira enquanto força política.
Conclusão
Observamos que o estilo de vida imposto à população negra durante
quatro séculos de escravidão não desapareceu com a Lei
Äurea . Assim, a população afro-brasileira pós 1888 herdou do sistema
escravocrata a pobreza crônica e o estresse nela embutido, além de um padrão
alimentar pobre em fibras e rico em calorias, gordura e sódio. Herdou também o
apreço ao cigarro e à aguardente. Ficou livre para morrer em consequência dos
fatores de risco para a saúde
Para podermos traçar um perfil atualizado sobre o processo saúde/doença
da população afrobrasileira, visando o estabelecimento de uma política pública
de promoção do bem-estar, precisamos antes responder a algumas questões;
-
Qual a estrutura da família afrobrasileira?
-
Qual o conceito de vida?
-
Qual a percepção de saúde?
-
A que se atribui a doença?
-
O que é ser ou estar sadio/doente?
-
Quais são as doenças crônicas e os padrões de doença associados à cultura e aos grupos étnicos?
-
Como se previne a doença?
-
Quais são os remédios utilizados para prevenção e cura?
A partir da análise das respostas obtidas poderemos ter um quadro
definido sobre o comportamento da população negra brasileira no que se refere
às práticas de saúde. Com base nestes dados poderemos então estabelecer uma
política de saúde verdadeiramente brasileira.
Referências Bibliográficas
CRUZ,
I.C.F. da A mão-de-obra negra
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In: Seminário Nacional
de Saúde
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1990. Anais, Ribeirão
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PORTER, C.P.; VILLARRUEL, A.M.
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POTTER, P.;
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Fato
e mito: descobrindo um problema
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Brasil. Cad Pesq, n. 79, p. 5-16, nov. 1991.
[1]
Este texto foi publicado em: CRUZ,
I.C.F. da Identidade Negra e Saúde.
In: SEMINÁRIO NACIONAL: A COMUNIDADE AFRO-BRASILEIRA E A EPIDEMIA DE
HIV AIDS, 2, RJ, Associação Brasileira Interdisciplinar sobre AIDS, 1997.
p.13-4.
[2]
Doutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo. Titular da
Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do NESEN - Núcleo de Estudos
sobre Saúde e Etnia Negra (www.uff.br/nepae/NESEN.htm). Pesquisadora do
CNPq (1997)
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BNN - ISSN 1676-4893
Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Atividades de Enfermagem (NEPAE)e do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN).