Notas
sobre prevenção da fraude - autodeclaração sobre raça/cor
Isabel Cruz[*]
Palavras
chave #FraudeÉtnicoRracial
#EquidadeRacial #AçõesAfirmativas
Keywords
#EthnicFraud
#RacialEquity #AffirmativeActions
.
Breve descrição do contexto:
As ações afirmativas para a população negra são o
reconhecimento do Estado brasileiro em relação à impagável dívida social
gerada pela escravidão e, na sequência, pelo racismo institucional.
Igualmente relevante é o direito da pessoa à auto-identificação
quanto ao gênero, raça/cor entre outras categorias identitárias.
Todavia, no que se refere à população negra, não se pode
ignorar a possibilidade de “fraude étnico-racial” nos programas de ação
afirmativa e o risco de comprometimento das políticas de promoção da equidade
social.
Recentemente,
com o propósito de prevenir a fraude, o Ministério do Planejamento,
Desenvolvimento e Gestão publicou uma instrução normativa que estabelece
regras para verificar a veracidade da autodeclaração prestada por candidatos
pretos ou pardos em concursos, determinando que “aspectos fenotípicos”
do(a) candidato(a) sejam verificados[1].
Da
forma como a sociedade brasileira foi constituída é justamente no Brasil que
os aspectos fenotípicos podem ser os mais injustos para as pessoas que não só
se identificam como negras, mas também são pertencentes à comunidade negra e,
a partir desta identidade, trabalham para a desconstrução do racismo
institucional.
Para
a prevenção da fraude na auto-declaração de pretos(as) e pardos(as), aos
aspectos fenotípicos é necessário acrescer a etnicidade, o pertencimento ou
reconhecimento da comunidade negra e, principalmente, no meu entender, as vivências
cotidianas de discriminação racial.
.
Descrição do problema:
Por ser a auto-declaração de raça-cor um exercício de
auto-consciência, como prevenir a fraude étnico-racial nos termos da lei?
É preciso ressaltar que a auto-declaração está disciplinada por
preceito legal e constitui-se ato jurídico em sentido estrito, segundo França[2],
e, portanto, uma vez expedida a auto-declaração há a presunção relativa de
veracidade, cabendo à Administração Pública, e não à/ao pessoa, comprovar
se não é “preto/a” ou “pardo/a”, observado o devido processo legal.
.
Medidas chaves para a mudança (ou melhoria):
Para aferir a fraude étnico-racial, não basta ficar diante
da pessoa que se auto-declara “preta”
ou “parda” e analisar seus aspectos fenotípicos, muito menos genéticos![3].
Segundo França, faz-se necessário que a Administração Pública expeça um
ato administrativo devidamente motivado para a exclusão do concurso público ou
a invalidação administrativa da nomeação, ao aplicar o art. 2º, parágrafo
único, da Lei Federal n.º 12.990/2014. Em se tratando de contrato de
trabalho, a Administração Pública deverá solicitar a sua invalidação
judicial.
Uma vez que a auto-declaração
é presumivelmente verdadeira e assim deve continuar sendo, pode-se considerar
que ela deve ser estendida a obtenção de outras informações relevantes para
o benefício oriundo da ação afirmativa para a população negra.
Assim, além do registro do quesito cor, deve ser acrescido ao questionário,
isto é, ao instrumento de
coleta de dados, constituído por uma série ordenada de perguntas, que devem
ser respondidas por escrito pelo(a) candidato(a) ao momento da inscrição, as
questões referentes à etnicidade, pertencimento e vivências cotidianas de
discriminação[4],
bem como ao comprometimento futuro com a desconstrução do racismo
institucional/viés racial implícito.
Até o momento, a evidência mostra que a combinação do critério racial com outros
critérios de controle de origem de classe (escola pública ou renda) garantem
que a imensa maioria dos cotistas pertença a grupos sub-representados,
diminuindo assim a importância das eventuais fraudes[5].
Isto posto, busco reafirmar que seja sempre a
declaração do(a) candidato(a) a alternativa ao dilema jurídico que se
apresenta.
.
Próximos passos:
Para prevenção da fraude étnico-racial nas
ações afirmativas para a população negra, considerando as marcas do racismo
institucional em nossa sociedade, será necessário instituir uma abordagem holística
ao processo de auto-declaração. Será fundamental elaborar e validar as questões
que obtenham informações sobre etnicidade, pertencimento e vivências
cotidianas de discriminação racial (percepção de discriminação[6]),
igualmente sobre o comprometimento futuro com a desconstrução do racismo
institucional/viés racial implícito em relação à população negra.
Mas, além do questionário, são necessárias
outras medidas. Vários grupos populacionais socialmente vulneráveis vivenciam
este mesmo problema quanto ao acesso às ações afirmativas e, a exemplo dos
nativos-americanos[7],
considero que mais esforços precisam ser feitos para garantir a diversidade e a
representatividade dos grupos populacionais nas instituições públicas, tais
como:
* incluir nos processos seletivos representação
do Movimento Negro & Feminista e/ou membro explicitamente vinculado(a) à
causa da igualdade racial.
* exigir que gestores/as públicos/as
participem de cursos de capacitação/atualização sobre desconstrução do
racismo institucional/viés racial implícito e políticas de promoção da
equidade étnico-racial
* dar ampla publicidade aos concursos e às ações
afirmativas junto à população negra, em especial.
Opção chave
Para o momento, a primeira ação no sentido
de prevenir a fraude étnico-racial nas ações afirmativas para a população
negra, é realizar um debate que dê subsídios para elaborar e validar as questões
que obtenham informações sobre etnicidade, pertencimento e vivências
cotidianas de discriminação racial, igualmente sobre o comprometimento futuro
com a desconstrução do racismo institucional/viés racial implícito em relação
à população negra.
Referências
[*]
Doutorado, USP (1993). Titular, UFF (1994). Coordenadora do Núcleo de
Estudos sobre Saúde e Etnia Negra/UFF (1994-)
[1]
Candidato a cotas raciais em concurso terá de confirmar autodeclaração.
Portal Brasil, agosto, 2016. Disponível em http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/08/candidato-a-cotas-raciais-tera-de-confirmar-autodeclaracao
[2]
França,
VR Validade e eficácia da autodeclaração de negro para fins de concurso público
federal. Direito do Estado, n 63, 2016. Disponível em
http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/vladimir-da-rocha-franca/validade-e-eficacia-da-autodeclaracao-de-negro-para-fins-de-concurso-publico-federal
[3]
Santos, Ricardo Ventura, & Maio, Marcos Chor. (2004).
Qual "retrato do Brasil"? Raça, biologia, identidades e política
na era da genômica. Mana, 10(1),
61-95. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132004000100003
[4] The Everyday Discrimination Scale. Disponível em http://scholar.harvard.edu/davidrwilliams/book/export/html/32495
[5]
Daflon, Verônica Toste, Feres Júnior, João, & Campos,
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brasileiro: um panorama analítico. Cadernos
de Pesquisa, 43(148),
302-327. https://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742013000100015
[6]
Freitas, Daniela Fonseca, Coimbra, Susana, Marturano, Edna
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Discriminação Quotidiana para Jovens Portugueses. Psicologia:
Reflexão e Crítica, 28(4),
708-717.https://dx.doi.org/10.1590/1678-7153.201528408
[7]
Association of American Indian
and Alaska Native Professors. Statement
on Ethnic Fraud. Sd. Disponível em https://pantherfile.uwm.edu/michael/www/nativeprofs/fraud.htm
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BNN - ISSN 1676-4893
Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Atividades de Enfermagem (NEPAE)e do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN).