Anotações sobre como os profissionais de saúde podem
desconstruir o racismo institucional dirigido à população negra no SUS[1]
Profa. Dra. Isabel Cruz
Breve descrição do contexto:
Inicio parabenizando a Comissão
Organizadora e a Escola
Bahiana de Medicina e Saúde Pública pela realização do II Colóquio de Saúde da
População Negra, a 21/10/2016. Isto indica um compromisso institucional com as
ações de desconstrução do racismo e outras ideologias opressivas. Na pessoa da
Profa. Msc Karine Santana, agradeço publicamente o convite a mim feito para
abrir este evento e expresso minha alegria em poder contribuir de alguma forma.
As iniquidades étnico-raciais nos
resultados do SUS quando se compara a população negra com a população branca
sugerem extensas variações na prestação do cuidado de saúde, no cumprimento dos
protocolos clínicos, entre outras possíveis razões, em que pese a área da saúde
ter como referenciais a prática baseada em evidência e o cuidado centrado na
pessoa.
Por exemplo, Leal et al[1]
(2005) quando estudaram a qualidade da assistência prestada em maternidades do
Município do Rio de Janeiro constataram que embora a anestesia tenha sido
utilizada para o parto vaginal, a proporção de puérperas que não tiveram acesso
a esse procedimento foi maior entre as pardas, 16,4% e pretas, 21,8%.
Descrição do problema:
O que causa iniquidades ou diferenças étnico-raciais
significativas nos resultados da interação da população negra com o SUS?
A resposta:
No nível do Estado: Racismo institucional nos resultados epidemiológicos do SUS para a população negra quando comparados à população branca [2] (grupo hegemônico)
"A gente repara que quando entra na sala uma pessoa mais clarinha,
eles [os profissionais de saúde] demoram mais no atendimento. Quando
entra uma negra, rapidinho sai. O atendimento lá dentro eles já não examinam a
pessoa toda, entendeu? Por isso tem essa diferença" (E05, preta) [3].
Resultados do (des) encontro clínico com viés racial. Ainda no
ponto do cuidado, a pesquisa de Monteiro et al (2008) evidenciou[4] dentre outras
denúncias: negligência médica às dores/falta de humanização na atenção e
agressão verbal.
Nesta Conferência, abordarei esta pergunta inicial a partir
da perspectiva do(a) Profissional de Saúde e, consequentemente, do Encontro Clínico.
Como os(as) profissionais de saúde podem abordar o racismo
institucional e controlar o viés racial implícito de modo a corrigir as causas
subjacentes das iniquidades nos resultados do SUS, garantindo acesso igual ao cuidado de saúde, bem como resultados de saúde iguais
entre os grupos populacionais atendidos nas mesmas instituições de saúde e
pelos(as) mesmos(as) profissionais?
A resposta:
Cabe aos/às profissionais de saúde implementar a Política Nacional de Saúde Integral
da População Negra (PNSIPN), bem como colaborar com gestores(as) e o
controle social na sua implementação, monitoramento e avaliação.
A PNSIPN foi
instituída pela Portaria nº 992/2009, do Ministério da
Saúde. E conta com princípios e diretrizes que buscam ser inseridos em todo o
Sistema Único de Saúde (SUS). Posteriormente, tornou-se lei. A Lei n° 12.288
estabeleceu em 2010 o Estatuto da Igualdade Racial, que prevê princípios e
iniciativas fundamentais para a consolidação de direitos às populações negras
brasileiras. No Título II, Capítulo I, dispõe do direito à saúde reproduzindo
integralmente a PNSIPN e o compromisso de reduzir as iniquidades em saúde que
atingem essa população.
Reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo
institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à
promoção da equidade em saúde[5]
Portanto, o racismo enquanto Determinante Social
da Saúde[6]
opera por meio da discriminação e exclusão, fazendo com que as pessoas
pertencentes ao grupo racialmente marginalizado tenham seu status de saúde
afetado ao longo da vida. Todavia, outras vulnerabilidades, se somam e
comprometem a capacidade da população negra em alcançar o bem-estar. Racismo
institucional e viés racial implícito são condições opressoras que extrapolam o
modelo “opressor(a)/oprimido(a)”, tendo em vista que acontecem em múltiplos
níveis das interações sociais, inclusive e principalmente, no Sistema de Saúde.
Medidas chaves para a mudança (ou melhoria):
Implementação da PNSIPN no ponto
do cuidado como um referencial anti-opressão integrado. Contudo, é necessário
que gestores(as), controle social e profissionais de saúde desenvolvam na
instituição práticas que reconheçam as diversidades, em especial a
étnico-racial, igualmente revisem os processos ideologicamente opressivos
(gênero, por exemplo) e façam a
implementação da PNSIPN, dentre outras políticas de equidade, uma prioridade.
Abordagens anti-opressivas
relacionadas à PNSIPN:
·
CUIDADO CENTRADO NA PESSOA
·
CUIDADO BASEADO EM EVIDÊNCIA
·
CUIDADO INTERPROFISSIONAL
Estratégias para mudanças:
A implementação da PNSIPN por si
só já é uma estratégia para a desconstrução do racismo institucional e do viés
racial implícito.
Dentre as diretrizes da PNSIPN,
destaco as que se seguem por sua relação com a prática dos(as) profissionais de
saúde.
Diretriz V:
implementação do processo de monitoramento e avaliação das ações pertinentes ao
combate ao racismo e à redução das desigualdades étnico-raciais no campo da
saúde nas distintas esferas de governo;
Coleta e análise do Quesito cor
A escassez, ausência ou falta de qualidade dos dados sobre
raça/cor e etnicidade em todos os níveis do SUS ou em todos os pontos da rede
de Atenção à Saúde (RAS) são barreiras à implementação da PNSIPN com base em
evidência no ponto do cuidado.
No momento, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei
7103/2014, de autoria de Benedita da Silva[7],
que modifica a Lei nº 12.288,de 20 de julho de 2010 (Estatuto da Igualdade
Racial), para incluir o quesito cor ou raça nos prontuários, registros e
cadastramentos do Sistema de Informação em Saúde do Sistema Único de Saúde
(SUS). Todavia, observo que o projeto não ressalta a já consagrada
classificação com 5 categorias utilizada pelo IBGE, por meio da
auto-declaração, nem também recomenda a não inclusão de uma “nova categoria”, a
saber: ignorado. Sem estas ressalvas, o sistema operacional se reorganiza e
continua garantindo a permanência do racismo institucional nas estruturas das
instituições de saúde.
Contudo, a escassez, ausência ou falta de qualidade dos dados
sobre raça/cor e etnicidade em todos os níveis do SUS ou em todos os pontos da
rede de Atenção à Saúde (RAS) não devem servir de justificativa para os(as)
gestores(as) do SUS não publicizarem os dados existentes de forma simples para
a sociedade como um todo e para o controle social, em especial. Um exemplo de
transparência é o site Data.CMS.gov dos EUA, mais precisamente o Mapping Medicare Disparities (MMD). Este é um recurso online que
disponibiliza os resultados de saúde sobre as doenças, bem como os custos de
hospitalização, entre outras informações. As informações no MMD são
apresentadas numa interface amigável para o(a) usuário(a) investigar e entender
as disparidades em saúde. Convido a conhecer em https://data.cms.gov/mapping-medicare-disparities
Diretriz VI -desenvolvimento
de processos de informação, comunicação e educação, que desconstruam estigmas e
preconceitos, fortaleçam uma identidade negra positiva e contribuam para a
redução das vulnerabilidades.
Coleta dos DSS – incluindo vivências de discriminação racial &
estratégias de enfrentamento
Assim como os(as) profissionais de
saúde não estão ou não foram preparados(as) para a coleta sensível do quesito
cor, tampouco coletam de forma sistemática dados sobre determinantes sociais da
saúde que ajudem a correlacionar os resultados de saúde daquele(a) paciente com
suas condições de vida, tais como: transporte, escolaridade, insegurança
alimentar, etc.
A coleta destas informações não é
sem propósito. A PNSIPN é uma política inter-setorial[8].
Os condicionantes dos indicadores de mortalidade na população negra por mortes
violentas, por exemplo, estão fora do SUS em sua maioria. Têm intimamente
relação com as condições de moradia (violência interpessoal, por ex),
transporte público precário (acidentes de trânsito), entre outros.
Conectar pacientes com os serviços do SUS (em todos os níveis/nodos da
RAS)
A implementação da PNSIPN exige que os(as) profissionais de
saúde façam a triagem das pessoas negras com maior vulnerabilidade social e
demandas de saúde e as vincule aos serviços do SUS ou do Estado apropriados.
A tecnologia de aplicativos está disponível para ajudar na
desconstrução de barreiras ao SUS. Um aplicativo tipo SUS-X pode vincular a
Unidade de Saúde ao/à paciente sem filas, sem burocracia, sem
esperas. É só o SUS disponibilizar as informações.
O(a) paciente em alguns casos e
os(as) profissionais na maioria destes poderiam entrar no aplicativo, escolher
a especialidade e fazer o agendamento de consultas, vacinas e exames. Tudo isso
sem precisar se deslocar pela cidade. E sem ônus!
IMG: app fictício
Próximos passos:
Infelizmente, salvo melhor juízo, gestores/as de todas as
esferas parecem não estar suficientemente convencidos/as nem sobre a gravidade
dos dados existentes nem sobre a força da lei da PNSIPN.
É crucial que o SUS implemente em todos os níveis a PNSIPN
para corrigir as diferenças e iniquidades em saúde.
Por outro lado, profissionais de saúde não devem ficar
inertes diante das iniquidades étnico-raciais em saúde.
Habilidades precisam ser articulada como, por exemplo:
A implementação da PNSIPN exige
que o encontro clínico seja centrado na pessoa e sua diversidade étnico-racial
e que o plano terapêutico seja sensível à sua cultura e à medicina de matriz
africana, inclusive.
Além do encontro clínico é
necessário intensificar as atividades de triagem e seguimento ou de transição
entre Unidades de Saúde.
Opções
chave
Em suma:
·
Coleta sistematizada e sistemática do quesito cor no SUS bem
como a análise regular, periódica, dos dados desagregados por raça/cor e
publicação dos resultados, visando o gerenciamento da saúde da população negra
no ponto do cuidado, inclusive.
·
Promoção de estratégias de equidade étnico-racial em TODOS os
programas de saúde, engajando a comunidade adstrita e o controle social.
·
Capacitação de profissionais de saúde continuadamente para a
promoção da saúde da população negra por meio de estratégias de equidade
étnico-racial nos programas de saúde.
·
Capacitação para a comunicação terapêutica entre
profissional-paciente
·
Garantia de uma cultura institucional isenta de viés racial.
Por fim, não são poucos os desafios, mas também não são
menores as demandas de saúde pela população negra, assim como de outros
serviços com suas correspondentes políticas públicas.
É nosso dever de ofício trabalhar pela implementação da
PNSIPN de modo que cada pessoa negra usufrua do direito de viver com bem-estar
e saúde todo o seu potencial.
Referências
[1] Texto
base da Conferência de Abertura do II Colóquio de Saúde da População Negra, a
21/10/2016, na Escola Bahiana de
Medicina e Saúde Pública em Salvador/ Bahia.
[2] CRUZ,
I.. Qual a razão de a galinha d'Angola ser o símbolo da Política Nacional de
Saúde Integral da População Negra-PNSIPN?. Boletim NEPAE-NESEN,
Local de publicação (editar no plugin de tradução o arquivo da citação ABNT),
13, ago. 2016. Disponível em: <http://www.uff.br/jsncare/index.php/bnn/article/view/2860/703>.
Acesso em: 17 Out. 2016.
[1] Leal Maria do
Carmo, Gama Silvana Granado Nogueira da, Cunha Cynthia Braga da. Desigualdades
raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001.
Rev. Saúde Pública [Internet]. 2005 Jan [cited 2016 Oct
12] ; 39( 1 ): 100-107. Available from:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102005000100013&lng=en.
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102005000100013.
[2] Capelo, R. Por que o
negro tem menos acesso à saúde do que o branco no Brasil? Revista Época. 2015.
Disponível em http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/06/por-que-o-negro-tem-menos-acesso-saude-do-que-o-branco-no-brasil.html
[3] Domingues
Patrícia Mallú Lima, Nascimento Enilda Rosendo do, Oliveira Jeane Freitas de,
Barral Fanny Eichenberger, Rodrigues Quessia Paz, Santos Carla Cristina Carmo
dos et al . Discriminação racial no cuidado em saúde reprodutiva na percepção de
mulheres. Texto contexto - enferm. [Internet]. 2013 June
[cited 2016 Oct 12] ; 22( 2 ): 285-292. Available from:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072013000200003&lng=en.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013000200003.
[4] Monteiro, A et al Racismo Institucional: o Serviço Público
de Saúde na Perspectiva de Mulheres da Periferia de Brasília. Associação
Brasileira de Antropologia, 2008. Disponível em http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/GT%2032/anita%20cunha%20monteiro.pdf
[5] PNSIPN. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html
[6] WHO A conceptual framework for action
on the social determinants of health. (Discussion Paper Series on Social
Determinants of Health, 2), 2010. Disponível em http://www.who.int/social_determinants/corner/SDHDP2.pdf
[7] Silva, B. da PROJETO DE LEI Nº 7103, DE
2014. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=606005
[8] SEPPIR. Racismo como determinante
social da saúde. Brasília, 2011. Disponível em http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/pub-acoes-afirmativas/racismo-como-determinante-social-de-saude-1
[9] Siqueira-Batista
Rodrigo, Schramm Fermin Roland. A bioética da proteção e a compaixão laica: o
debate moral sobre a eutanásia. Ciênc. saúde coletiva [Internet].
2009 Aug [cited 2016 Oct 17] ; 14( 4 ): 1241-1250.
Available from:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000400030&lng=en.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232009000400030.
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BNN - ISSN 1676-4893
Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Atividades de Enfermagem (NEPAE)e do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN).