A causa da elevada taxa de morbi-mortalidade da população negra no Brasil e a não notificação do quesito cor na área da saúde.
No Brasil, em função da forma histórica de constituição de nossa sociedade, o fenômeno saúde-doença deve ser compreendido pela perspectiva da diversidade cultural (afro-brasileira, indígena, européia, asiática, entre outras culturas) e da (in) equidade em saúde. Como campo de intervenção social, parte-se da constatação de que o racismo e a discriminação racial expõem mulheres e homens negros a situações mais perversas de vida e de morte, as quais só podem ser modificadas pela adoção de políticas públicas, capazes de reconhecer os múltiplos fatores que resultam em condições adversas.
Os indicadores sociais brasileiros revelam que os afro-brasileiros constituem 45,33% da população brasileira. Contudo, na população pobre (renda inferior a R$ 61,00/mês), 63,63% são negros (pretos e pardos). Em que pese o SUS garantir a universalidade da saúde, numa sociedade profundamente desigual como a brasileira, a conquista da universalidade dos serviços tem se mostrado insuficiente para assegurar a equidade pois, ao subestimar as necessidades de grupos populacionais específicos, contribui para agravar quadro das condições sanitárias de afro-brasileiros (Cruz, 1993). Há escassez de estudos e pesquisas sobre o processo saúde doença da população afro-brasileira e sobre o impacto do racismo sobre esta população, em particular, e sobre a sociedade brasileira, como um todo (Cruz, 1998 a,b; 1999; 2001).
É necessário que os gestores e os profissionais dos serviços de saúde, diante da diversidade cultural brasileira, considerem as teorias transculturais e de bioética para abordar a discriminação, o preconceito e o estigma nas relações inter-étnicas entre o sistema de saúde e o cliente, assim como o processo de trabalho em saúde (Cruz, 2002).
Há necessidade de se construir um conhecimento teórico sobre o processo saúde/doença das etnias que compõem a nação brasileira, a partir dos dados do SUS que já contempla em seu sistema a categoria etnia/cor (SINAN e protocolos de pesquisa em seres humanos), ainda que sub-notificada, como também a partir dos dados das pesquisas que observem a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, sobre a ética da pesquisa com seres humanos, que exige a inserção do quesito cor na identificação da amostra. A não notificação pode ser entendida “invisibilização”, isto é, uma prática para-etnocida que tem por objetivo o controle das populações não-hegemônicas.
A notificação do quesito cor constitui, na realidade, uma reação à ação invisibilizadora da sociedade nacional (Oliveira Junior, 1999.). Estes dados permitirão aos profissionais de saúde o estudo sistemático, por exemplo, da formação da identidade individual e coletiva, ou seja, os sistemas de pertencimento e de identificação, pela perspectiva da saúde. Igualmente será possível verificar como acontecem, no contexto da interação com o sistema de saúde, a perda da identidade e a aculturação/assimilação que, por sua vez, podem conduzir às situações de despojamento e opressão (D´Adesky, 2001), violências simbólicas e reais.
A importância da coleta e da interpretação do dado relacionado ao quesito cor, por auto-declaração, reside no fato de que será possível, doravante, evidenciar as relações antagônicas e as dinâmicas interculturais entre os usuários do SUS pertencentes a comunidades de diferentes extratos sociais e o sistema de saúde propriamente dito.
No plano individual, os dados propiciarão o estudo sobre as estratégias psicológicas de defesa construídas culturalmente, tais como a somatização, a negação, a racionalização (Carvalho, 1998) e a invisibilidade (Oliveira Júnior, 1999), para o enfrentamento do racismo e de outras ideologias discriminatórias, tendo em vista de que somos uma sociedade pluri-étnica com uma cultura hegemônica.
A consolidação do conhecimento sobre a saúde cultural brasileira se completa com a proposição de estratégias que permitam o estabelecimento de políticas e programas voltados à correção da desigualdade social e da discriminação. Cabe ressaltar que um ciclo de mais de 500 se completou com a III Conferência Mundial contra o Racismo, em 2001, na África do Sul, e um novo ciclo se inicia a partir daí, tanto para o Estado quanto para a sociedade. Em função desta luta secular pela sociedade civil organizada, o Ministério da Saúde criou uma seção sobre saúde indígena e publicou um manual sobre doenças prevalentes em afrodescendentes; e a OPAS, visando combater a iniquidade, aprovou uma proposta de Política Nacional de Saúde da População Negra (NESEN, 2002).
Entretanto, até o momento, persiste a sub-notificação do quesito cor nos documentos do SUS o que reforça a necessidade de sensibilizar e capacitar os trabalhadores de saúde na coleta desta importante variável, ressaltando o significado e a relevância do seu correto registro, por meio da auto-declaração do usuário ou de seu responsável, sobre uma das cinco opções apresentadas: branco (ascendência européia), preto, pardo (ascendência africana), amarelo (ascendência oriental/asiática) e indígena. Cabe observar que a auto-declaração enquanto uma variável de saúde é uma dado relevante para o profissional porque é uma informação que expressa a identidade auto-centrada sob a forma de resistência ou assimilação do usuário à pressão da sociedade (Oliveira Júnior, 1999).
A não notificação do quesito cor nos documentos do SUS perpetua o mito da democracia racial, prevalente na sociedade brasileira, e oculta a violência simbólica caracterizada, entre outras coisas, pelo ideal de mestiçagem (concepção evolucionista em direção à aparência “melhor” ou branca) (D´Adesky, 2001). Conseqüentemente, permanece a dificuldade de os profissionais de saúde e usuários lidarem com estes fenômenos em nível pessoal e coletivo.
Somente o conhecimento científico sobre a dimensão étnica da população brasileira permitirá a implementação de estratégias que neutralizem a perspectiva positivista, idealista e eurocêntrica, causadora de prejuízos para os usuários (como as barreiras no acesso à saúde) e para os trabalhadores do sistema de saúde; e que propiciem o planejamento, a provisão e a avaliação da atenção à saúde por uma perspectiva culturalmente sensível para os grupos étnicos não-hegemônicos.
Bibliografia de referência:
CARVALHO, M. de doente a “encantado” – o conceito de mecanismo de defesa constituído culturalmente e a experiência de uma vítima de “espírito mau” em uma comunidade rural da Amazônia. In: Antropologia da Saúde.Traçando identidade e explorando fronteiras. RJ. Fiocruz/Relumé Dumará, 1998.157-77p.
CRUZ, I.C.F.da A implementação da metodologia do processo de enfermagem: impasses e perspectivas. Online Brazilian Journal of Nursing (OBJN -ISSN 1676-4285) v.1, n.1, 2002 [Eletrônico]. Disponível em: http://www.uff.br/nepae/objn101cruz.htm. Acesso em: 13/09/2002.
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OLIVEIRA JR, A . N. de A invisibilidade imposta e a estratégia da invisibilização entre negros e índios: uma comparação. In: Bacelar, J.; Caroso, C. (org) Brasil: um país de negros?RJ, Pallas. Salvador-BA, CEAO, 1999. 165-74p.
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Publicado originalmente em Revista
da Saúde CNS/MS, Brasília, v. 3, n.03, p. 49-50, 2002.
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BNN - ISSN 1676-4893
Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Atividades de Enfermagem (NEPAE)e do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN).