Boletim NEPAE-NESEN

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra –PNSIPN na Atenção Primária à Saúde (Digital):  promovendo a equidade no ponto do cuidado

Isabel Cruz

 

Considerações iniciais

Que o racismo institucional é um determinante social da saúde (DSS) a sociedade brasileira já reconheceu e para seu enfrentamento aprovou a lei 12.288/2010 cujo capítulo 2 é a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra – PNSIPN. Igualmente não é um fato novo que a PNSIPN oferece condição para que o(a) profissional de saúde atue sobre muitos outros determinantes sociais que comprometem a saúde da pessoa.

O desafio que já estava posto e que teve sua magnitude ampliada com a pandemia de covid-19 é o enfrentamento de um recente determinante social: a “cisão digital” (digital divide)[1]. Entende-se como cisão digital a distância entre as pessoas que têm acesso às tecnologias e à cultura digital, bem como habilidades para usufruí-las e aquelas pessoas que não têm.

Na perspectiva da PNSIPN, a cisão digital em sinergismo com o racismo institucional pode intensificar as disparidades e comprometer a adoção do portal do paciente e o uso de suas funcionalidades, entre outros aplicativos. Igualmente, ser uma barreira no acesso a cuidados de telessaúde.

Você, junto com a equipe interprofissional de saúde na Atenção Básica, precisa estar sensível para identificar e enfrentar tanto o racismo institucional quanto a cisão digital, indicando onde um ou outro ou ambos levam levando a iniquidades em saúde e, consequentemente, a disparidades em saúde. Neste estudo, aponto algumas estratégias em saúde digital que garantam o encontro clínico isento de viés racial[2].

Problema

A potencial desarticulação da PNSIPN, entre outras políticas de equidade, com a ESD 2020-2028[3] surge como um problema a ser trabalhado no ponto do cuidado pela equipe interprofissional de saúde junto com a gestão e o controle social.

Há o risco de digitalizar a saúde, evitando o uso das tecnologias digitais no que elas oferecem de recursos para avaliação de processos (big data), para a identificação de iniquidades (análise preditiva) e para correção de percursos clínicos (machine learning e inteligência artificial). Assim sendo, num contexto de “saúde digitalizada”, o prontuário eletrônico em vez de ser o repositório do encontro clínico da pessoa negra com o(a) profissional de saúde será apenas mais uma planilha de dados puramente contábeis que interessa apenas à gestão desconectada.

Soluções em pauta

Dentre as soluções em pauta, destaco o PEC (Prontuário Eletrônico do[a] Cidadão[ã]). Concordo com Oliveira et al[4] quando afirmam que as informações do Prontuário Eletrônico são parte significativa de um processo de decisão, alertando para o quanto a qualidade destas informações influenciam nas tomadas de decisão clínica e impactam no desenvolvimento da instituição de saúde.

Neste sentido, há funcionalidades no prontuário eletrônico que facilitam e muito a vigilância em saúde no ponto do cuidado, na perspectiva da PNSIPN e demais políticas de equidade do SUS, fazendo surgir uma nova área de estudo para a equipe interprofissional: Ciência de Dados de Cidadania o que não é exatamente o mesmo que a definição corrente para “Citizen Data Science”. As funcionalidades disponíveis no prontuário eletrônico permitem que profissionais de saúde “façam coisas legais com os dados”, tal como identificar desigualdades nos resultados terapêuticos entre pessoas brancas e negras recebendo os mesmos cuidados, na mesma Unidade, com os mesmos profissionais, ainda que não tenham formação avançada de estatística e matemática[5].

O diálogo entre a PNSIPN e a Estratégia de Saúde Digital permite reconhecer nos sistemas de informação utilizados na captação de dados da Atenção Básica (AB) as funcionalidades que propiciam a implementação, o monitoramento e a avaliação da Saúde da População Negra nos territórios, bem como demais políticas de promoção da equidade social em saúde.

Ao considerar os instrumentos da Ciência de Dados da Cidadania, cabe ressaltar que é imperativo analisar de forma desagregada e multivariada o quesito cor e demais dados estratificadores de equidade[6] (idade, sexo, gênero, renda, escolaridade e localização geográfica) que são comumente usados para medir as desigualdades em saúde, incorporando o princípio da interseccionalidade no processo de saúde-doença e no ciclo vital.

É igualmente imprescindível para a identificação de iniquidades entre os grupos populacionais usar tanto medidas absolutas (com base na diferença) e relativas (com base na taxa) para quantificar as desigualdades entre os grupos populacionais, fornecendo uma descrição abrangente, caso presente, da desigualdade em saúde, evitando vieses de notificação.

Para que a tomada de decisão seja feita com informações robustas será preciso trabalhar cotidianamente na AB pela qualificação nas formas de coleta, processamento, validação e uso de dados sensíveis como o quesito cor, bem como de informações em saúde, tal como experiência de discriminação racial. Isto é necessário para que a tomada de decisão seja eficiente e eficaz no enfrentamento das desigualdades em saúde[7].

E o mais importante: obter dados fidedignos. Para tanto, é preciso captar com a pessoa, de forma compassiva, dados sensíveis sobre determinantes sociais da saúde, assim como sobre a expriência de discriminação, epara identificação e enfrentamento das ideologias opressivas que impactam no encontro clínico.

Proposta de ação

Com o propósito de articular a PNSIPN com a Estratégia de Saúde Digital 2020-2028, chamo a atenção para as funcionalidades do Prontuário Eletrônico do(a) Cidadão(ã) (PEC) as quais permitem monitorar tanto a qualidade do encontro clínico quanto a vigilância em saúde no ponto do cuidado. O uso dessas funcionalidades do prontuário eletrônico, na perspectiva da PNSIPN , deve acontecer de modo interprofissional e centrado na pessoa, igualmente em colaboração com o controle social do território adstrito.

Posso afirmar, sem medo de errar, que o prontuário eletrônico é o principal sistema de informação em saúde (SIS) para o monitoramento de iniquidades, considerando indicadores de resultado capazes de medir a experiência da pessoa negra nas relações interpessoais e na sua trajetória dentro da instituição de saúde.

Para cada nível no SIS, há dados específicos. O quesito cor poderá até vir a compor o Conjunto Mínimo de Dados (CMD), mas muito provavelmente, apenas no prontuário eletrônico encontraremos o registro sobre a “experiência de discriminação”, assim como a terapêutica proposta para o diagnóstico risco de dignidade humana comprometida”.

Na perspectiva da PNSIPN, o Registro Clínico Eletrônico Orientado a Problema -RCEOP deverá incluir especialmente a percepção da pessoa negra quanto a seu problema de saúde, tratamento e trajetória no SUS (dados subjetivos). Além disso, o diagnóstico, tratamento e avaliação de problemas como percepção de discriminação racial ou diagnóstico como risco de dignidade humana comprometida, considerando uma relação interpessoal colaborativa entre paciente e profissional.

No que se refere ao quesito cor, é importante definitivamente se entender se este será apenas um dado ou uma informação clínica[8] relevante para o encontro clínico.

Quanto à Roda de Intervenção, este é, no meu entender, um referencial útil para orientar as ações com foco na saúde da população negra na Atenção Básica porque mostra o que fazer, no mínimo, para pessoas, famílias e comunidade, incluindo neste fazer as tecnologias digitais de informação e comunicação.

Uma vez que o racismo institucional está nos processos, a implantação da ESD 2020-2028 é uma excelente oportunidade para revisar os fluxos organizativos na Atenção Básica de modo que a trajetória da pessoa no SUS fique isenta de barreiras ideológicas ou discriminatórias.

A articulação da PNSIPN com a ESD 2020-2028 poderá garantir a coleta qualificada do quesito cor, a obtenção de informações sobre as experiências de discriminação e sobre as estratégias de superação do racismo. Assim, sera possível alimentar modelos de Inteligência Artificial Compassiva, o que é quase um sinônimo digital para sabedoria.

Para o momento, o prontuário eletrônico em implantação na Atenção Básica permite a produção de relatórios consolidados com dados desagregados pelo quesito cor. É factível avançar desde já na identificação de desigualdades em cada Unidade de Saúde e as ferramentas da Ciência de Dados de Cidadania estão disponíveis. Basta usar.

Considerações finais

Em síntese, o prontuário eletrônico é apresentado aqui como uma base de dados que permite articular a PNSIPN com a ESD 2020-2028, bem como um recurso que possui funcionalidades que nos permitem necessário monitorar os dados de saúde para identificação e correção das iniquidades étnico-raciais no ponto do cuidado.  

Isto posto, recomendo fortemente que você se aproprie das ferramentas de Saúde Digital, em especial o prontuário eletrônico, assim como da Ciência de Dados de Cidadania, e as use na perspectiva da PNSIPN para que possamos mais rapidamente eliminar as diferenças injustas e evitáveis no acesso ao SUS, garantindo serviços justos e isentos de vieses para todas as pessoas, sem exceção.  

Referências

[2] Cruz, ICF da. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra-PNSIPN: interfaces com a enfermeira e sua equipe quanto aos desafios na superação do racismo no encontro clínico .Boletim NEPAE-NESEN, 2018. Disponível em: <http://www.jsncare.uff.br/index.php/bnn/article/view/3098/781>. Acesso em: 16 maio 2021.

[3] CRUZ, Isabel CF da. The Priority 4 at Brazilian Digital Health Strategy 2020-2028: analysis from the nurse's perspective. Journal of Specialized Nursing Care, [S.l.], v. 12, n. 1, dec. 2020. ISSN ISSN 1983-4152. Available at: <http://www.jsncare.uff.br/index.php/jsncare/article/view/3387/842>. Date accessed: 16 may 2021.

[4] Oliveira, S et al Qualidade da Informação do Prontuário Eletrônico do Paciente no Processo de Apoio à Decisão Clínica. Journal of Health Informatics v. 13, n. 1 (2021) Disponível em http://www.jhi-sbis.saude.ws/ojs-jhi/index.php/jhi-sbis/article/view/767

[5] Gosh, P Citizen Data Scientists: Where Do They Belong? Dataversity. Apr, 2021. Disponível em https://www.dataversity.net/citizen-data-scientists-where-do-they-belong/

[6] Canadian Institute for Health Information. In Pursuit of Health Equity: Defining Stratifiers for Measuring Health Inequality — A Focus on Age, Sex, Gender, Income, Education and Geographic Location. Ottawa, ON: CIHI; 2018.

[7] Hayashi, AA. Um Modelo de Banco de Dados Analítico para Dados de Saúde Pública: . Monografia (Bacharelado). Instituto de Matemática e Estatística, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

[8] Cruz, ICF da O quesito raça-cor: informação ou categoria de produção do conhecimento antirracista? GT Mulheres na Ciência UFF, Niterói, 27 nov, 2020. Disponível em https://youtu.be/vtVQaoTdxOI

 

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BNN - ISSN 1676-4893 

Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Atividades de Enfermagem (NEPAE)e do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN).