Indo 
muito além do sistema de cotas na Universidade: quais outras estratégias são 
necessárias para superação da discriminação institucional?[*]
Isabel 
Cruz
Resumo. 
Problema. Ação 
das forças motoras obscuras que visam manter inalteradas as estruturas 
discriminatórias nas instituições universitárias, neutralizando todo o 
potencial que o sistema de cotas, em especial as raciais, oferece no sentido de 
fazer docentes e estudantes vivenciarem a Educação como a mais profunda experiência 
humana. Método: 
Uma busca na base Scielo utilizando os descritores cotas e política 
afirmativa nos deu como resultado 16 artigos publicados entre 2002 e 2010. 
Selecionei para análise os artigos publicados entre 2012 e 2008, totalizando 6 
artigos. Resultados. As 
pesquisas revelam que os estudantes oriundos do sistema de cotas desempenham de 
maneira similar aos demais da instituição, todavia há uma nova forma 
operacionalização do racismo à medida em que o estudante é discriminado ou 
se percebe inferior não por ser “negro ou negra”, mas por ser 
“cotista”. Conclusão. Se 
e quando a universidade e todo o seu corpo social trabalharem efetivamente pela 
plena realização de uma política que o movimento social conquistou para toda 
a sociedade pelas vias democráticas estarão educando 
pelo exemplo. 
. 
Breve descrição do contexto: 
Tanto 
no mundo, quanto especialmente no Brasil, para que todos os seres humanos 
atinjam sua plenitude e realizem todo o potencial criativo de suas existências 
é necessário “desestruturar” os arcabouços discriminatórios de nossas 
instituições. Paradoxalmente até das instituições educacionais e, pasmem, 
incluindo nestas as universidades.
Embora 
parte da sociedade não consiga vislumbrar o mosaico que a compõem, uma outra 
parte trabalha diuturnamente para que todos e todas tenham os mesmos direitos e 
deveres sociais e, principalmente, tenham o respeito recíproco como o mediador 
fundamental de todas as relações.
Como 
exemplo, podemos afirmar que um resultado concreto do trabalho intensivo e 
extensivo dos movimentos sociais, utilizando as ferramentas da democracia, foi a 
conquista das cotas como uma das inúmeras estratégias necessárias à superação 
de históricas desigualdades sociais.
Por 
termos evidências científicas de que estas desigualdades são o produto da 
operacionalização das ideologias opressivas como o racismo, o sexismo e a 
homofobia, só para citar algumas, precisamos usar os instrumentos que a ciência 
nos oferece para irmos além das cotas e extirparmos das nossas estruturas 
sociais todo e qualquer ranço ideológico.
. 
Descrição do problema: 
A 
discriminação institucional 
acontece quando uma organização não é capaz de prover um serviço 
profissional e adequado às pessoas por causa de sua cor ou origem étnica, 
sexo, orientação sexual, idade, etc, podendo ser evidenciada e/ou detectada em 
processos, atitudes ou comportamentos que denotam discriminação derivada de 
estereótipos, preconceito inconsciente, ignorância ou falta de atenção e que 
colocam pessoas e grupos em situações de desvantagem[1].
Mas, 
tendo em vista que uma das leis da natureza nos alerta que para toda ação há 
uma reação igual em sentido contrário, com a implantação do sistema 
de cotas na Universidade, ainda que por uma lei conquistada de forma democrática, 
veremos surgir em novas formas de operacionalização as ideologias opressivas 
com forças obscuras estimulando a competitividade excessiva e egóica[2].
Felizmente, 
uma outra lei da natureza também nos alerta que a mudança de movimento é 
proporcional à força motora imprimida. Portanto, este é o momento de 
neutralizar estas forças motoras obscuras que visam manter inalteradas as 
estruturas discriminatórias nas instituições, neutralizando dentro das 
universidades todo o potencial que o sistema de cotas, em especial as raciais, 
oferece no sentido de fazer docentes e estudantes vivenciarem a Educação como 
a mais profunda experiência humana.
. 
Processo de obter dados: 
Uma 
busca na base Scielo utilizando os descritores cotas e política afirmativa nos 
deu como resultado 16 artigos publicados entre 2002 e 2010.
Selecionei 
para análise os artigos publicados entre 2012 e 2008, totalizando 6 artigos.
. 
Resultados e análise: 
A 
síntese das evidências científicas e apresentada no quadro a seguir.
| Artigo | Achado | 
| Andrea 
      Cicalo, G (2008)[3] | - 
      os estudantes beneficiados pelas cotas se desempenham de uma maneira 
      similar aos demais estudantes e mostram taxas menores de deserção.  - 
      a UERJ começou a desenvolver uma nova identidade estudantil em torno ao 
      fato das cotas terem diversificado o corpo estudantil e misturado pessoas 
      de diferente procedência racial e social.  - 
      a porcentagem de estudantes de cotas que se inscrevem a cada ano nos 
      cursos tem decrescido constantemente desde que o sistema foi introduzido 
      em 2003 (as razões que explicam este fenômeno tem sido pouco exploradas) | 
| Menin, 
      M et al (2008)[4] | - 
      há uma rejeição às políticas relacionadas às cotas, uma vez que 
      estas foram percebidas como mais ameaçadoras do que aquelas referentes ao 
      vestibular e ao cursinho gratuito.  - 
      evidente o conflito de valores: mérito versus igualdade compensatória.  - 
      o mérito é representado como o sistema mais justo para ingresso de 
      alunos questionando-se as políticas de ação afirmativa. Segundo os 
      autores, este senso comum é o grande desafio posto a essas políticas. | 
| Santos, 
      S et al (2008)[5] | - 
      Os autores relembram que as previsões feitas pelos homens na virada do século 
      XIX para o XX contra o voto feminino não passavam de terrorismo masculino 
      contra as mulheres e comparam este exercício de futurismo com o trabalho 
      contemporâneo de alguns cientistas sociais que mesmo sem nenhum indício 
      concreto afirmam, ou melhor, fazem previsões aterrorizadoras, que a política 
      afirmativa de sistema de cotas para negros implica "divisões 
      perigosas", bem como levará a conflitos raciais no Brasil do futuro. 
      – Os autores consideram que assim como não houve a dissolução da família 
      brasileira com a ampliação dos direitos das mulheres, pelo contrário, 
      houve o seu fortalecimento à medida que a sociedade brasileira foi se 
      democratizando, a sociedade será mais pacífica racialmente à medida que 
      os negros e outros grupos étnico-raciais tiverem as mesmas oportunidades 
      e os mesmos tratamentos e direitos que a população branca tem no Brasil. | 
| Nery, 
      M et al (2009)[6] | - 
      Entre os estudantes universalistas observou-se indiferença em relação 
      ao cotista e descaso em relação a questões raciais.  - 
      Por parte dos cotistas houve uma autocobrança por excelente desempenho 
      acadêmico para aplacar a discriminação gerada pelas cotas.  - 
      Com relação aos processos identitários, houve predomínio do 
      ocultamento da identidade e o temor de se expor no novo papel social.  - 
      Conclui-se pela necessidade de criação de projetos psicossociais para 
      efetivar a integração dos estudantes no contexto da política 
      afirmativa. | 
| Winther, 
      J et al (2010)[7] | Constatou-se 
      que, em alguns aspectos, essa política não incrementaria o corpo 
      discente da UFMG de indivíduos com menor potencial de aprendizado, embora 
      certas políticas complementares devam ser tomadas com relação a outros 
      fatores. | 
| Santana, 
      E (2010)[8] | - 
      a autora remete às desigualdades históricas entre negros e brancos, 
      demonstrando que não se trata de política de discriminação e de 
      favorecimento, mas de atendimento aos princípios constitucionais.  - 
      Apresenta uma evolução do princípio da isonomia, os elementos inerentes 
      e o aspecto social e jurídico que permeia a temática, destacando os critérios 
      adotados pelo Supremo Tribunal Federal para verificação da 
      constitucionalidade das prerrogativas atribuídas aos negros.  | 
O 
que sabemos sobre cotas como estratégia para o enfrentamento do racismo 
institucional?
As 
pesquisas identificadas com base neste breve estudo bibliográfico nos permitem 
considerar que os estudantes oriundos do sistema de cotas desempenham de maneira 
similar aos demais da instituição (Andrea Cicalo, 2008; Winther et al, 2010).
Contudo 
é preciso que o sistema da universidade de acompanhamento do estudante seja 
sensível para distinguir se o que move o estudante é uma real motivação ou o 
racismo intrapessoal se manifestando na forma de autocobrança (Nery et al 
2009).
As 
pesquisas também revelam uma nova forma operacionalização do racismo à 
medida em que o estudante é discriminado ou se percebe inferior não por ser 
“negro ou negra”, mas por ser “cotista” (Menin et al 2008; Andrea 
Cicalo, 2008; Nery et al 2009). 
As 
pesquisas revelam ainda que a operacionalização da resistência às cotas pode 
ser conduzida tanto por pessoas com formação em ciências realizando estudos 
pseudo-acadêmicos (Santos et al 2008) quanto e, principalmente, pelos 
estudantes que tiveram acesso pela via universal e percebem esta via como a única 
meritória (Menin et al 2008; Andrea Cicalo, 2008; Nery et al 2009). Estas 
afirmativas do senso comum são feitas por pessoas que fazem questão de ignorar 
até mesmo a constitucionalidade deste direito (Santana, 2010). 
Dentre 
as estratégias possíveis para ajudar os estudantes oriundos do sistema de 
cotas, sugere-se a criação de projetos psicossociais para efetivar a integração 
dos estudantes no contexto da política afirmativa, assim como políticas 
complementares para atacar outros fatores como o racismo institucional 
propriamente dito (Nery, 2009; Winther et al, 2010).
. 
Medidas chaves para a mudança (ou melhoria): 
As 
instituições são constituídas por pessoas, então além da discriminação 
institucional, devemos também considerar a discriminação interpessoal e incluí-la 
nas estratégias de enfrentamento do racismo e outras ideologias opressoras.
Eu 
racista? Há mais do que a necessidade de explicitar a discriminação atuante 
nas pessoas e, consequentemente, nas instituições. É preciso corrigir os 
mecanismos de autoreprodução das disciminações.
Neste 
sentido, foram criadas e promulgadas as leis que apontam para a adoção de uma 
pedagogia ou andragogia anti-racista que de forma transversal aos conteúdos clássicos 
dos currículos e disciplinas realize o desvelamento e o enfrentamento das 
discriminações embutidas na dinâmica da sociedade.
Uma 
vez que as ideologias opressivas estão em plena atividade, obviamente, até 
para profissionais treinados no desvelamento de preconceitos nem sempre é 
simples tratar estas questões. Mas é necessário. Precisamos aprender a lidar 
com estes fenômenos nefastos em nível pessoal e coletivo. 
Devemos 
criar espaços e oportunidades para discutir racismo, sexismo e outras formas de 
opressão das pessoas em especial nas instituições de ensino superior de modo 
que nossos alunos, uma vez profissionais, sejam capazes não só de identificar 
em quais processos/procedimentos o racismo institucional está arraigado, mas 
também combater a sua continuidade e prevenir o seu ressurgimento.
A 
universidade, como um todo, e os cursos, em particular, têm como tarefa fazer 
continuadamente o diagnóstico da situação quanto às ideologias em operação. 
Passo contínuo, devem elencar e implementar ações para neutralização das 
atitudes discriminatórias de gênero, raça, classe social, opção sexual, 
entre outras. Por fim, apenas por didatismo, instalar um processo de 
monitoramento e avaliação das políticas de prevenção das discriminações.
. 
Estratégias para mudanças: 
Se 
e quando a universidade e todo o seu corpo social trabalharem efetivamente pela 
plena realização de uma política que o movimento social conquistou para toda 
a sociedade pelas vias democráticas estarão educando 
pelo exemplo. Seguramente uma das melhores estratégias de ensino.
. 
Próximos passos: 
Sem 
esquecer o ensino, a pesquisa e a extensão, ressalto que o estudante é a 
“raison d´être” da Universidade. De certo modo, as políticas afirmativas 
vêm lembrar às universidades a sua finalidade: educação 
centrada no aluno acontecendo numa comunidade de aprendizagem
A 
diplomação dos alunos oriundos pelo sistema de cotas é apenas um dos aspectos 
a serem observados numa avaliação institucional. Os estudos de coorte nos dirão 
futuramente o quanto a Universidade terá contribuído para formar profissionais 
de forma igual, universal, descontinuando o processo de discriminação da 
sociedade na qual está incluída, mas não necessariamente misturada.
Opções 
chave
No 
sentido de combater e prevenir a discriminação institucional:
- 
monitorar e avaliar os processos educacionais e seus resultados desagregando os 
dados por raça/cor, gênero e orientação sexual
- 
estabelecer metas diferenciadas instituindo indicadores de equidade social
- 
fazer o acompanhamento intensivo das pessoas que por sua situação de 
vulnerabilidade social tenha o seu desenvolvimento acadêmico prejudicado.
- 
criar e manter projetos psicossociais para efetivar a integração dos 
estudantes no contexto da política afirmativa
- 
estabelecer políticas complementares para atacar outros fatores como o racismo 
institucional (pedagogia ou andragogia anti-racista)
- 
monitorar e avaliar as políticas afirmativas (com o estabelecimento de metas 
diferenciadas e indicadores de acompanhamento)
Referências
[*] Palestra proferida no IV IFRJ em Debate , 09/04/2013.
[1] 
    Smedley, B.D., Stith, A.Y., Nelson, A.R. Unequal 
    treatment: understanding racial and ethnic disparities in healthcare. 
    Washington, DC: National Academy Press, 2002. Disponível em http://www.nap.edu/catalog/10260.html 
    Acesso em 02/02/2004.
[2] 
    Masato Mitsuda Zen 
    Buddhist Perspectives on Modern Education , California Institute of Integral Studieshttp://www.bu.edu/wcp/Papers/Asia/AsiaMits.htm 
    
[3] 
    Andrea Cicalo, Giuseppe. What Do We Know About 
    Quotas? Data and Considerations About the Implementation of the Quota System 
    in the State University of Rio de Janeiro (UERJ). univ.humanist.,  
    Bogotá,  n. 65, jun.  2008 
    .   Disponível em 
    <http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072008000100012&lng=pt&nrm=iso>. 
    acessos em  14  mar.  2013.
[4] 
    Menin, Maria Suzana De Stefano et al . Representações 
    de estudantes universitários sobre alunos cotistas: confronto de valores. Educ. Pesqui.,  São Paulo,  v. 34,  n. 2, ago.  
    2008 .   Disponível em 
    <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022008000200004&lng=pt&nrm=iso>. 
    acessos em  14  mar.  2013.  
    http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022008000200004.
[5] 
    Santos, Sales Augusto dos et al . Ações 
    afirmativas: polêmicas e possibilidades sobre igualdade racial e o papel do 
    estado. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis,  v. 16,  n. 3, dez.  
    2008 .   Disponível em 
    <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2008000300012&lng=pt&nrm=iso>. 
    acessos em  14  mar.  2013.  
    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2008000300012.
[6] 
    Nery, Maria da Penha; Costa, Liana Fortunato. 
    Afetividade entre estudantes e sistema de cotas para negros. Paidéia 
    (Ribeirão Preto),  Ribeirão Preto,  v. 19,  n. 43, ago.  
    2009 .   Disponível em 
    <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-863X2009000200014&lng=pt&nrm=iso>. 
    acessos em  14  mar.  2013.  
    http://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2009000200014.
[7] 
    Winther, Juliana Mara, & Golgher, André Braz. 
    (2010). Uma investigação sobre a aplicação de bônus adicional como política 
    de ação afirmativa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Revista 
    Brasileira de Estudos de População, 27(2), 
    333-359. Recuperado em 14 de maro de 2013, de 
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-30982010000200007&lng=pt&tlng=pt. 
    10.1590/S0102-30982010000200007.
[8] 
    Santana, Elaine Barbosa. (2010). As políticas públicas 
    de ação afirmativa na educação e sua compatibilidade com o princípio da 
    isonomia: acesso às universidades por meio de cotas para afrodescendentes. Ensaio: 
    Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 18(69), 
    737-759. Recuperado em 14 de maro de 2013, de 
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40362010000400005&lng=pt&tlng=pt. 
    10.1590/S0104-40362010000400005.
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BNN - ISSN 1676-4893
Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Atividades de Enfermagem (NEPAE)e do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN).
 
  
  
  
  
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